Nos muitos discursos que marcam a atual geração de seres humanos sobre a Terra, há uma contradição que julgo particularmente chamativa. Nunca se falou tanto da necessidade de vitórias, quanto à realização pessoal, e nunca vimos tantas pessoas derrotadas. Esse acúmulo de revezes, todavia, parece ser sistematicamente ignorado. Ao invés de entendermos o motivo de nossos fracassos e refletirmos sobre a possibilidade de transformar atitudes, percepções e a sociedade como um todo, ficamos a repetir mantras corporativos. Mais esforço, mais dedicação, mais trabalho, menos reclamações, menos críticas, menos compreensão sobre o caráter estrutural de nossos insucessos.
Mesmo que deixemos de lado o fato de sermos cada vez mais explorados (enquanto lamentamos a terrível carga tributária que aflige bilionários), ainda sobra uma boa quantidade de derrotas com as quais teremos de lidar. O envelhecimento inexorável e o estalar das juntas; tudo que projetamos e, por infinitas razões, não conseguimos concretizar; as transformações que não assistiremos; e as certezas que não alcançaremos. Assim, ainda que façamos muitos exercícios e tenhamos uma dieta rica em frutas, verduras e legumes, cedo ou tarde nossos joelhos começarão a doer. Nem todos os negócios resultarão em sucesso e lucro, nem todos os amores serão correspondidos. Infelizmente, é provável que cidadãos de vários países não vivam o suficiente para alcançar uma realidade de conforto e prosperidade. E é fato que não teremos a certeza absoluta da existência de um Deus até o momento em que tal possibilidade se imponha de forma dramática e definitiva – não saberemos disso antes do fim e essa angústia irá nos acompanhar até lá.
Com a garantia dessas derrotas, deveríamos receber algum tipo de formação capaz de explicar como lidar com as frustrações, tristezas e amarguras que inevitavelmente teremos de encarar. Afinal, quantas não são as pessoas que conhecemos que, por conta de um tropeço existencial, viveram o resto de seus dias em amargura? O que se nota, no entanto, é a negação total e completa de que esses assuntos possam sequer ser considerados. A maneira mais segura de se tornar indesejável em um grupo de amigos é tentar falar sobre acidente, azar, demissão, desamor, doença, morte… Provavelmente dirão que você provoca sentimentos ruins, posto que fala de assuntos desagradáveis e atrai energias “pesadas” ou “negativas”. Aí, quando você perder o emprego ou começar a espirrar, será obrigado a ouvir: mas também, Beltrano, você tem essa mania de falar dessas coisas todas! Ora, essas “coisas todas” existem e fazem parte da vida. Talvez seja uma atitude sábia reconhecer tal fato e refletir sobre como lidar com situações desse tipo. Além disso, a menos que abrace algum charlatanismo pseudocientífico, você já sabe que as bactérias e vírus não dão a mínima para o tema de sua conversa durante o café da tarde. Esteja você falando sobre apendicite ou recitando a oração da prosperidade de São Lalau, a crise e o atual ministro da Economia poderão lhe trazer desemprego e contas atrasadas.
Mesmo que seja urgente o aprendizado sobre a frustração e a tristeza, é inegável que algumas derrotas podem ser transitórias. Caso exista disposição para uma reflexão honesta e não contaminada pelo autoengano da autoajuda, alguns fracassos podem ser uma fonte inestimável de aprendizado. Assim, a má fase de nosso time de futebol pode ser superada por uma sequência de vitórias e títulos sob uma administração mais competente. A falência de um negócio pode ser o ponto de partida para busca de melhor formação, entendimento do mercado e criação de uma nova iniciativa, com maiores chances de êxito. Em um cenário bem mais amplo, o comprometimento de uma população com a transformação de seus rumos pode ser o caminho para construção de grandes nações. Assim foi com a busca pela independência e a superação da miséria na República da Irlanda. O mesmo foi visto na reinvenção empreendida pela Alemanha e o Japão após a 2ª Guerra Mundial. Do mesmo modo, a derrubada do ditador Fulgêncio Batista e o fechamento dos prostíbulos da máfia é um ponto marcante na história cubana.
Entender que derrotas acontecerão e que algumas são inevitáveis não significa, portanto, abraçar um sentimento de desesperança irremediável. Trata-se, antes, de um comportamento maduro, que deveria ser compartilhado por pessoas adultas. Eventualmente, você vai ficar doente e morrer, não importa o que diga o palestrante do seu curso de vendas. Compreender essa realidade, porém, não significa que você deva desistir da existência. Ainda há muito por realizar – e se você já tentou alcançar um objetivo e não conseguiu, pode até tentar novamente, veja só.
Entre as derrotas definitivas e aquelas que podem ser revertidas, a maior frustração vem daquelas que até poderíamos superar, mas que, por incompetência, se converteram em fracasso permanente. No caso do Brasil, como parte de nossa tragédia crônica como antinação, temos o problema da educação. Para onde quer que se olhe, em nossa história, há um abacaxi educacional cuja duração se define pela imortalidade. Falo da confusão entre escola laica e conteúdo religioso, da falta de vagas, baixos salários para docentes, reprodução de preconceitos, a fome dos alunos, falta de óculos, telhado quebrado, computador que não funciona e por aí vai. Até os sucessos se convertem muito rapidamente em frustração: os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) do Rio de Janeiro apodrecem à vista da sociedade e fica a impressão de que se quer, ao mesmo tempo, matar a escola e a memória de seu construtor, Leonel Brizola (1922-2004).
Importante dizer, contudo, que este não será mais um texto de lamentações sobre a escola pública. E, ao contrário dos usuários de chapéus de alumínio que infestam a internet, não acredito que a privatização do sistema de ensino resolveria qualquer problema. Inclusive gostaria de aproveitar esse ponto para refletir sobre outros desastres da educação, no Brasil e no restante do planeta – desta feita, desastres monetizados.
Ainda que o movimento estudantil repita à rouquidão que “educação não é mercadoria”, sim, ela foi transformada nisso. E essa é uma derrota fundamental de nosso tempo. Tal situação aparece de forma mais ou menos evidente na educação básica, mas é uma realidade escandalosa na maior parte do ensino superior privado.
Quanto ao discurso, se você é proprietário de uma instituição desse tipo, provavelmente irá repetir que seu cliente terá: uma grade curricular que vai direto ao ponto, só com aulas “úteis”; a certeza de uma notável empregabilidade ao final de sua “formação”; e tudo isso pelo menor preço possível. Em outras palavras, o cliente (aluno) não terá disciplinas de ciências humanas e sociais e não terá de se preocupar em aprender sobre o que é preconceito e intolerância. Ora, por que um programador ou engenheiro elétrico precisa aprender essas bobagens? Neste desafio interpretativo, empregabilidade significa que não se pretende criar pensadores, intelectuais, pessoas com curiosidade científica ou interesse em uma carreira acadêmica. Queremos que você arrume um emprego, ganhe bastante dinheiro e fique muito feliz com isso, mesmo que, ao final, ache que Dostoiévski é um tipo de estrogonofe e que Kafka é um espetinho árabe. E a mensalidade? Ela é pequena porque, em muitas instituições, a sala é cheia, o professor é mal pago e tem uma rotina de trabalho extenuante e o importante é o certificado ao final dos quatro ou cinco anos regulamentares. Lembre-se: em muitos casos, não se trata de formação, mas de um certificado adquirido em prestações.
Em suma, vende-se uma mercadoria de baixa qualidade cuja principal promessa é a de transformar seus consumidores também em mercadorias. Melhor dizendo, transformá-los em commodities no mercado de trabalho. Por definição, um insumo com pouco valor agregado, uma matéria-prima altamente disponível, que pode ser descartada, comprada ou alugada com grande facilidade. Nesta luta, o trabalho de um professor converte-se em atividade quixotesca permanente. Trata-se de desafiar mercado, burguesia e ideologia corrente, tudo ao mesmo tempo e solitariamente. Pior: tenta-se salvar aquele que, no cotidiano, comporta-se como pior inimigo, o porta-voz das bobagens corporativas e leitor das orelhas dos livros olavistas. O aluno.
Para quem acredita em formação crítica e transformadora, para pensar o mundo muito além do emprego, tudo isso é uma derrota cuja gestão é particularmente difícil.
Em tempo: no Brasil, um texto como este já nasce atemporal.
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