Em defesa da defesa de Karl Marx

Em defesa da defesa de Karl Marx

Neste capítulo criticarei Karl Marx – o que é lamentável numa época em que tantos escritores, que antes ganharam o seu sustento indo buscar, explícita ou tacitamente, inspiração na grande riqueza das ideias e visões marxistas, decidiram-se tornar-se antimarxistas profissionais, sendo que um deles, no decorrer de tal processo, chegou a descobrir que o próprio Karl Marx não era capaz de sustentar-se a si mesmo, esquecendo momentaneamente as gerações de autores que Marx “sustentou”. Em situação tão delicada, posso apenas lembrar ao leitor uma declaração de Benjamin Constant, feita quando este se viu obrigado a atacar Rousseau:

“Evitarei decerto a companhia de detratores de um grande homem. Quando, por acaso, pareço concordar com eles em algum ponto, desconfio de mim mesmo; e, para consolar-me de haver aparentemente compartilhado de sua opinião… quero renegar e repudiar o mais possível esses pretensos colaboradores”.

Hannah Arendt em A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009 [1958], p. 89.

1. O totalitarismo para além do extermínio físico

Muitas vezes, tenho a sensação de que me repito. Como se escrevesse o mesmo texto incontáveis vezes. Este é um caso. Já tratei da obra de Karl Marx (1818-1883); da desonestidade intelectual; do totalitarismo no mundo contemporâneo; e de temas assemelhados algumas tantas vezes. Uma possível explicação para esse caminhar em círculos está na falta de tempo para novas leituras e reflexões – eis, aliás, a desculpa preferida de quem vive de escrever (ou produzir conteúdo, como dizem os jovens). Neste caso específico, no entanto, o problema é de outra ordem: do mesmo modo que o Brasil nos obriga a beber, a estupidez me obriga à resposta. Resposta à fraude analítica, desconexão com a realidade, virulência discursiva e afins.

Na condição de cientista social e interessado em questões de método, sempre procurei me ater a debates em que possuía um mínimo de acúmulo teórico. Destarte, nunca me aventurei a tratar de derivadas e integrais com meus alunos de engenharia, tampouco do “ciclo de Krebs” com colegas da área de saúde. A mesma cortesia, de modo geral, não é estendida a nós que cometemos a insensatez de buscar sustento nas ciências humanas. Basta um vídeo de vinte minutos do falecido celerado da Virgínia – o astrólogo – e mais um texto de cinco páginas em um blog obscuro e lá vai o sujeito dizer que refutou um Hegel1. “Refutar”, eis o verbo da moda. Uma vítima preferencial dos polemistas formados pela leitura de almanaques é o pobre Marx. Aquele pensador de obra titânica, estudado nos principais centros intelectuais do planeta e ofendido por incontáveis néscios que jamais se debruçaram sobre uma única página de sua obra. Aliás, importante diferenciar os ofensores daqueles que, compreendendo a importância do autor, são capazes de elaborar uma crítica relevante. Nesse caso, Hannah Arendt (1906-1975) oferece um bom exemplo, na epígrafe acima. Ou, para quem está começando, Raymond Aron (1905-1983) propõe uma introdução crítica ao pensamento marxista em seu As etapas do pensamento sociológico (1965) – livro em que, ademais, realiza uma boa introdução geral à Sociologia.

A meu ver, a disposição para esses ataques à obra de Marx tem direta conexão com as emanações do totalitarismo contemporâneo. O uso desse conceito de forma mais convencional diz respeito à ideia de remodelação total de uma sociedade: seus valores, símbolos, práticas sociais, suas definições de certo e errado; seu passado, presente e futuro. Para que seja possível remodelar a sociedade de forma tão radical, precisa haver a tomada do Estado, com a apropriação e transformação de todo o seu aparato representativo e burocrático – administração, poderes constituídos, arcabouço jurídico e demais instituições. Essa operação de redesenho de uma sociedade, de uma nação, de forma absoluta, depende de uma orientação política autoritária. O totalitarismo e a democracia são, dessa forma, completamente incompatíveis. Em sentido prático, basta imaginar o encaminhamento de uma discordância para com Adolf Hitler (1889-1945) ou Josef Stalin (1878-1953). Rejeita-se, de forma violenta, a possibilidade do dissenso e da crítica, desaparece a possibilidade do debate livre e fraterno de ideias. O regime totalitário investe de forma brutal contra seus opositores reais ou imaginários: sejam eles os judeus, os espiões imperialistas, os sabotadores, a população homoafetiva etc. A agressão sistemática, física ou simbólica, é o motor de propagação do pensamento totalitário tradicional, é o elemento articulador do ódio e do terror de massas. Essa movimentação, historicamente, produziu câmaras de gás, campos de trabalhos forçados, manicômios judiciários e assemelhados.

Vale dizer, em última análise, que o totalitarismo propõe uma forma de organização social de tão amplo alcance que se pretende controlar inclusive o que pensam os indivíduos. E se alguém comete o desatino de abrir uma brecha de autonomia em seu íntimo, pode acabar denunciado pelo filho, marido, amigo, amante etc. Talvez o melhor exemplo desse tipo de conformação nem esteja nos livros de história: o tipo ideal desse constructo político, ideológico e burocrático aparece nas páginas de 1984 (primeira edição em 1949), de George Orwell (1903-1950).

Importante ponderar, no entanto, que o totalitarismo contemporâneo não se encarna em campos de concentração nazistas ou gulags. Entre a queda da União Soviética (1991) e a terceira década do século XXI, o que se produziu foi uma radical dominação do pensamento, em que não há qualquer espaço para o contraditório. Quem se arrisca à proposição de alternativas pode receber epítetos tão desagradáveis quanto louco, ingênuo, ignorante, mal-intencionado, sanguinário ou pervertido. Tente argumentar, da forma mais amena e paciente possível, sobre as limitações do binômio meritocracia e empreendedorismo. Experimente explicar que o sucesso não se resume a uma questão de esforço. Cometa a ousadia de afirmar que a previdência pode ser deficitária, pois é obrigação de uma nação digna arcar com o sustento material de seus idosos. Ou, caso sobre disposição, fale sobre o neoliberalismo como mercadificação de todas as relações sociais, com a transformação do humano em capital. Ora, se tais questionamentos pontuais estão proibidos, o espaço para crítica e proposição de utopias, especialmente aquelas fundadas na organização coletiva, é ainda mais restrito.

Pode parecer exagero o uso do termo “totalitarismo”. Dessa forma, para avaliar a adequação desse conceito, podemos realizar alguns experimentos mentais. Você tem medo de fazer comentários de caráter progressista? Teme a possibilidade de perda do emprego por se posicionar no polo político-ideológico à esquerda? Já foi admoestado por criticar o funcionamento e as prioridades do que se convencionou chamar “mercado”? Já lhe explicaram, em tom professoral, que sua vida dedicada a um trabalho mal pago, embora de relevo social, é um exercício ingênuo, quiçá quixotesco? Caro professor, você já deve ter visto uma expressão de espanto quando explicou que gosta de sua profissão e que não tem o salário como única referência de realização pessoal.

Em sentido contrário, não há notícia de que o mesmo desconforto seja imposto a quem trabalha com gestão de recursos humanos. Não há notícia de pessoa ameaçada de perder o emprego por regurgitar as platitudes da moda sobre capital humano e responsabilidade socioambiental corporativa. Ninguém irá lhe dar uns sopapos, na fila da padaria, caso você seja integrante do conselho de administração de um grande banco, desses que cometem assaltos com os juros do cartão de crédito.

Para além dos exercícios mentais, no cenário eleitoral de 2022, as ameças profissionais e de caráter discursivo assumiram contornos de efetiva violência física contra quem pensa à esquerda: você poderia apanhar no meio da rua por uma camisa vermelha, um livro do Paulo Freire (1921-1977) ou por defender uma ideia genericamente progressista. Caso seja negro e tente confrontar o discurso agressivo de extrema direita, você pode acabar perseguido, à luz do dia, por uma deputada de pistola em punho.

No mundo da acumulação flexível de capital e da sociedade de controle, observamos a articulação de um totalitarismo igualmente flexível e de controle. Não se trata de agradecer ao pão oferecido por papai Stalin, tampouco de acordar e dormir repetindo que só há salvação ariana em Hitler. Trata-se, antes, de permitir que o debate público se desenvolva, eleições sejam realizadas e que a pequena liberdade cotidiana e pedestre seja desfrutada. Os aparelhos ideológicos, sejam de Estado ou corporativos, apenas se abaterão sobre pessoas ou grupos quando estes se dispuserem à contestação e a posicionamentos que rompam com a hegemonia. De modo mais direto: você pode gritar a plenos pulmões contra a diretoria do ASA de Arapiraca2 em um programa esportivo ou desfilar sem roupas no carnaval carioca, desde que não tente falar sobre o problema da propriedade privada ou a falta de regulação sobre corporações globais. A interdição ao debate é, simultaneamente, seletiva, precisa e permanente e se materializa em inciativas como a censura ao trabalho docente, perseguição a artistas e intelectuais de viés progressista, violência contra símbolos associados à esquerda, criminalização aos movimentos populares etc. De tempos em tempos, a depender do grau de deterioração do debate público, é possível ouvir ecos fascistas que julgávamos superados. Assim, o totalitarismo contemporâneo não é, nem de longe, tão atroz quanto seus antecessores. Mas é muito eficiente no controle do discurso e do pensamento, com o uso da violência extremada somente quando necessário.

Esse totalitarismo difuso, flexível, em rede, não é necessariamente dependente do Estado. Não estamos a tratar de um “totalitarismo totalizante”, como ocorreu na Alemanha nazista entre 1933 e 1945 ou nos expurgos soviéticosde 1932-1938, comandados por Stalin. Ainda que o Estado permaneça um emissor ideológico assaz relevante, como na história recente do Brasil, existe verdadeiro protagonismo por parte da sociedade. Esclareço. As administrações de Fernando Collor (1990-1992), Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), Lula (2003-2011), Michel Temer (2016-2019) e Jair Bolsonaro (2019-2023) afirmaram intermináveis vezes a impossibilidade de escapar ao marco neoliberal – não apenas na prática das políticas públicas, mas no próprio confronto ideológico. Essa inescapabilidade à razão neoliberal3 é o mantra governamental brasileiro e da esmagadora maioria das administrações do planeta – sejam elas de esquerda ou de direita. Contudo, quando se vê algo como a oposição ao Obamacare nos Estados Unidos ou a classe média que grita contra concursos públicos e universidades federais no Brasil, é preciso considerar que Pierre Clastres (1934-1977) ficaria perplexo com o que foi feito da expressão a sociedade contra o Estado4. Mais que isso, quando a sociedade clama pelo Estado mínimo e passa a gritar que legislação trabalhista e sindicatos são mecanismos de proteção à vagabundagem, ela passa a ser promotora da autocensura e do próprio empobrecimento – intelectual e material. Todos nós, ao recusarmos a possibilidade da utopia e ridicularizarmos quem ainda a defende, nos convertemos em difusores desse novo modelo totalitário. Todas as vezes em que uma turma se mobiliza para descobrir em quem votou o professor de Sociologia e, a partir disso, sabotar sua aula, se nota o desejo de controle do pensamento.

O totalitarismo contemporâneo, escorado em ideais neoliberais e no protagonismo da sociedade civil organizada, autoriza essa perseguição à obra de Marx. Afinal, como ignorar o mais contundente dos autores quanto ao entendimento e crítica do capitalismo? Como ignorar aquele que provocou revoluções dos mais diversos tipos nos últimos 150 anos? Aliás, que fique claro: este não é um texto de promoção das teses marxistas ou do pensamento progressista em sentido lato. Trata-se, antes, de perguntar as razões de um bloqueio ideológico tão intenso, capaz de gerar prejuízos efetivos contra quem se atreve a considerar alternativas para o atual estado de coisas em nosso planeta. Trata-se de perguntar, enfim, como se justificam propostas tão delirantes quanto a criminalização do comunismo ou a supressão de conteúdos marxistas nos programas universitários.

2. O conceito de socialismo e a obra de Karl Marx

De partida, é preciso dizer de que trata o termo “capitalismo”. O capitalismo nada mais é que um modo de produção. Uma forma que a humanidade encontrou para produzir tudo aquilo que necessita para sua sobrevivência e reprodução. Antes desse modo de produção, tivemos outros: a economia baseada em trabalho escravo; e o feudalismo. Em todos esses casos, a um modo específico de produzir o necessário à existência humana, corresponde um conjunto de práticas sociais, símbolos, elementos culturais etc. Em uma apropriação simplista do jargão conceitual sobre esse tema, a uma infraestrutura econômica/produtiva capitalista corresponde uma superestrutura social/cultural igualmente capitalista. Portanto, ao mesmo tempo em que a economia capitalista produz mercadorias, ela cria relações sociais que, por sua vez, contribuirão para lhe justificar e sustentar.

Reforçando, para que exista capitalismo é necessário existir um direito capitalista, um Estado capitalista, uma educação capitalista e até mesmo um afeto capitalista. Do mesmo modo que o capitalismo cria uma estrutura social e cultural que lhe corresponde, esta última ajuda na manutenção e reprodução do próprio modo de produção capitalista. Semelhante dinâmica pôde ser observada nos modos de produção anteriores e é de se imaginar que algo idêntico ocorra quando surgirem os sucedâneos do que atualmente há em termos produtivos. A economia escravista criou uma sociedade escravista; o feudalismo criou a sociedade feudal; o socialismo criará/criaria uma sociedade socialista e assim por diante.

Para que se tenha perfeita noção do alcance dessa relação de produção e troca entre infraestrutura e superestrutura, podemos tratar do caso dos afetos. Os jovens, a partir da década de 1920, ganharam um novo espaço de intimidade para “namorar”. Esse espaço corresponde ao produto que simboliza a produção industrial e o paradigma fordista, qual seja, o automóvel. Na falta de motéis e desejosos de alguma privacidade, os bancos de carros serviram como campo de teste para compatibilidade sexual. Na mesma lógica industrial fordista, que previa estabilidade no emprego e altos salários, assistimos à era dos casamentos de vida toda, com famílias absolutamente padronizadas, com um casal heteroafetivo, três filhos, um carro na garagem, um cachorro e viagens de fim de ano. O trabalho estável levava à poupança, crescimento patrimonial, filhos com elevação de capital cultural/educacional e assim por diante. Ao desenvolvimento de uma economia em rede, associada à multiplicação informacional e flexibilidade produtiva, correspondeu um aumento da instabilidade do trabalho e do afeto. Não há mais emprego de vida toda, tampouco casamento. Pessoas físicas convertem-se em pessoas jurídicas que prestam serviços a variados clientes. Desaparece o casamento entre trabalhador e empresa. O amor de longa duração entre humanos é substituído pela troca de imagens via aplicativos e redes sociais; por encontros fortuitos, intensos e breves; e por uma combinação de hipertrofia erótica e vazio sentimental. Eis a era do Tinder e do Instagram – ou do Amor Líquido (2003), como diria Zygmunt Bauman (1925-2027).

A obra de Marx tem notável importância pelo esforço que empreende de descrição e análise crítica da produção e circulação de mercadorias, além dos conceitos fundamentais para percepção do quão longe vai a formação das consciências nesse contexto. Assim, além de falar da produção em si, o autor tratou de alienação, fetichismo da mercadoria, ideologia, estrutura de classes, luta de classes etc. Ao contrário do que supõe a desinformação oferecida pelas redes sociais, as proposições de Marx para superação do capitalismo não compõem a maior parte de sua reflexão – em termos quantitativos ou qualitativos. Sua mais relevante produção intelectual, aliás, chama-se (vejam só!) O capital (três volumes, editados entre 1867 e 1894). Sobre a superação do capitalismo e a busca de um novo modo de produção, primeiro pelo socialismo e posteriormente pelo comunismo, encontraremos algumas análises, de muito menor alcance, na Crítica do programa de Gotha (1891). O famigerado Manifesto comunista/Manifesto do partido comunista (1848) tem propósitos panfletários, de apresentação do movimento comunista e de breve discussão sobre as lutas do proletariado, sobretudo na Europa. Aquele que se deu ao trabalho de lê-lo até o final deve ter notado que possui características muito mais reformistas que revolucionárias e, por esse motivo, não é particularmente esclarecedor sobre o que Marx propunha para o futuro da humanidade após o capitalismo.

De todo modo, o socialismo e o comunismo seriam, nas proposições de Marx, modos de produção a suceder o capitalismo após a tomada do poder pelo proletariado, pela via revolucionária. O socialismo corresponde ao estágio inicial e transitório de superação do capitalismo. Trata-se de expropriar os meios de produção pertencentes à burguesia e transferi-los ao Estado, que passará a ser o representante das necessidades de toda a sociedade e gestor dos processos econômicos. Nessa mudança, o Estado deixa de ser o comitê de administração dos interesses da burguesia e passa a concentrar, gerir e socializar a produção, tendo por farol os desejos dos trabalhadores. Caso isso soe um pouco confuso, é preciso considerar que, nessa fase de transição, as classes ainda estão em processo de dissolução. O socialismo consiste em uma sociedade em que as classes foram formalmente abolidas mas em que subsistem práticas, símbolos e interesses que remetem às ideias da burguesia e do proletariado, bem como de sua oposição.

O comunismo, estágio posterior dessa transformação revolucionária, corresponde ao desaparecimento do Estado. A sociedade passa a se autogerir e o mundo se converte num grande coletivo de produtores associados. Não há mais sinal, portanto, da oposição entre classes sociais. Nesse ponto, uma observação se faz necessária. Como bem elaborou Elias Jabbour, de forma recente, é praticamente impossível fixar, de antemão, em um programa preciso e detalhado, o que seriam o socialismo e o comunismo. Marx era um materialista e não um idealista: um novo modo de produção, para superação do capitalismo, emergirá do desenvolvimento das forças produtivas, da organização da classe trabalhadora e do aprofundamento das contradições observadas nas relações entre capital e trabalho. Isso posto, devemos superar, a um só tempo, as limitações das críticas vindas do liberal-conservadorismo e a ladainha dos programas esquerdistas quando esses dois campos se unem para criar e divulgar uma leitura dogmática e milenarista dos escritos de Marx.

Por óbvio, soa ridícula qualquer tentativa de resumir em poucas linhas a densidade do pensamento marxista. De todo modo, em minha defesa, a proposta é menos de resumo e mais de exposição do ridículo do atual debate público sobre esse pensador e seus conceitos-chave. A querela sobre banheiros unissex não é algo que venha da teoria marxiana. O aumento do número de ateus em nações europeias não tem conexão necessária com os escritos desse pensador. O fato de haver maior interesse em planejamento familiar ou vivências afetivas que destoam do padrão também não é algo que derive de seus textos. Você vai encontrar feminismos, movimentos de afirmação étnico-racial, afetividades, formas de autoidentificação, políticas compensatórias, críticas à religião, desconfianças quanto à propriedade privada etc. em variados autores, linhas de pensamento, grupos políticos e afins. Acredite ou não, há casais homoafetivos conservadores, feministas liberais, ateus de direita e – pasme! – um programa de renda mínima particularmente generoso que vem do Alasca, um sólido reduto republicano nos EUA.

Talvez seja o caso de lembrar àqueles que não têm o hábito dos livros de história, que não há conexão inescapável entre a tal “pauta de costumes” e experiências socialistas. Algumas das tentativas revolucionárias que tiveram maior alcance e duração histórica, aliás, se mostraram particularmente conservadoras nessa seara. Até a primeira década dos anos 2000, o Estado cubano promovia ativamente a intolerância contra a comunidade LGBTQIA+ da ilha. O bloco socialista europeu e soviético demonstrava grande resistência às vanguardas artísticas, sobretudo àquelas que pudessem violar um pretenso senso de obediência aos ideais revolucionários e/ou tudo que pudesse lembrar uma suposta degeneração moral dos países capitalistas.

A associação entre mudanças comportamentais e campo progressista – mas não necessariamente socialista ou comunista – tem duas explicações que merecem destaque. Primeiro, o fato de, contemporaneamente, em muitos países, essas pautas terem sido efetivamente encampadas por esse campo político-ideológico. Por altruísmo, convicção política, cálculo eleitoral ou oposição ao reacionarismo medievalista que está na moda, é o campo progressista que se ocupa ativamente do combate à homofobia, transfobia, feminicídio etc. Igualmente, tenta tornar o mundo um lugar menos hostil às minorias e grupos socialmente marginalizados. Segundo, temos a desinformação e o desconhecimento. Fora da hidrofobia, é possível encontrar representantes do pensamento conservador que, embora zelosos de tradições e mudanças lentas, não se esquivam à defesa da dignidade humana. Não que se trate do melhor exemplo, mas um experimento particularmente divertido é contar a um reacionário se ele sabe que sua ídola maior, Margaret Thatcher (1925-2013), era favorável ao direito à interrupção da gravidez e que votou favoravelmente à descriminalização da homossexualidade no Reino Unido. Também podemos ver o caso da legalização da produção e consumo de maconha, para usos recreativos e/ou medicinais, em várias áreas dos EUA, inclusive em parte considerável do sul solidamente republicano e conservador. Até o Missouri, exemplo do conservadorismo dixie e que ainda pratica a pena de morte, já permite o uso recreativo da erva – paradoxalmente, correntes esquerdistas em nosso país afirmam que o consumo de cannabis é parte de uma conspiração global contra a saúde da juventude.

Ainda nos EUA, Calvin Coolidge (1872-1933), Harry Truman (1884-1972) e Dwight Eisenhower (1890-1969) são três bons exemplos de lideranças conservadoras de inclinações democráticas, que inclusive defendiam pautas como os direitos das populações indígenas e o fim da segregação racial. No Brasil, Juscelino Kubitschek (1902-1976), Ulysses Guimarães (1916-1992) e Cláudio Lembo (1934) são boas amostras do pensamento conservador anterior à histeria reacionária divulgada via YouTube.

3. Despreparo para o debate público

Importante destacar, novamente, que este não é um texto de promoção da obra de Marx ou de seu programa político. Não só prefiro Max Weber (1864-1920), como não teria qualquer problema em me perceber idealista e aparentado de Platão (428/427 ou 424/423 – 348/347 a.C.) – só não o faço por sincera humildade acadêmica. O que se quer abordar é o notável grau de despreparo daqueles que, cotidianamente, se propõem a “refutar” o colosso marxista. Trata-se de demonstrar que, na esmagadora maioria dos casos, as pessoas sequer sabem do que estão falando. Em uma evidência anedótica, posso citar o exemplo do sujeito que, a pretexto de criticar O Capital e a ideia de que o valor de uma mercadoria deriva da quantidade de trabalho nela contida, diz que melhor seria ler Adam Smith (1723-1790). O mesmo Adam Smith que foi extensamente lido por Marx e que também considera que há uma relação necessária entre riqueza, valor e trabalho. Outro experimento humorístico interessante é tentar explicar a esse tipo de crítico que, além de Smith, Marx era um ávido leitor de David Ricardo (1772-1823) – pois é, um dos pilares econômicos da obra do alemão barbudo é o pensamento liberal inglês.

Ora, mas ele advogava uma revolução proletária violenta para tomada do poder pertencente à burguesia! Exatamente. Esse autor, que viveu as convulsões políticas da Europa no século XIX e os efeitos da Revolução Francesa (1789) – a revolução burguesa que literalmente decapitou a aristocracia –, acreditava que a violência era um meio efetivo de radical mudança social. A mesma violência vista, por exemplo, na Reforma Protestante e na Contrarreforma, nas guerras religiosas entre protestantes e católicos na Europa. Violência que consolidou o empreendimento colonial, o colapso dos impérios da Antiguidade… Isso significa meu apoio a um banho de sangue para mudança forçada do atual modo de produção? Não. Essa é apenas uma tentativa de explicar a necessidade de interpretar as ideias de um determinado autor à luz do contexto em que foram produzidas. Ou de compreender a dinâmica da mudança social em momentos históricos específicos. Inclusive, você pode perguntar a um jacobino se não seria mais humano conversar com Maria Antonieta (1755-1793) sobre o preço dos brioches.

Ora, se o comunismo está mais diretamente vinculado à obra de Marx, podemos lembrar que o termo “socialismo” tem variados sentidos e apropriações. Trata-se de uma ideia genérica de social ou de algo coletivo? Do socialismo utópico de Henri de Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) e/ou Robert Owen (1771-1858)? Da social-democracia tal qual implementada na Europa e principalmente na Escandinávia? Da ideia de socialismo enquanto união nacional em torno de uma causa fascista, como no caso do Partido Nacional-Socalista dos Trabalhadores Alemães? Ou, enfim, do socialismo tal qual proposto pelos escritos de Marx? A quem teme que o Brasil se torne uma nova Cuba, Venezuela, China, Coreia do Norte ou coisa que o valha – e utiliza isso para atacar o termo “socialismo” e a obra de Marx simultaneamente – sempre cabe lembrar que o principal promotor recente do desenvolvimento capitalista em nosso país foi esse tal de Lula. Inclusive com a preservação da democracia. A propriedade dos meios de produção permaneceu privada, a burguesia ganhou um montão de dinheiro e não fundaram um soviete sequer. Veja você.

Por sua vez, o próprio Weber não regateava elogios à obra de Marx, que considerava de penetração quase profética na realidade histórica que se propunha examinar. Já em 1920, numa das suas últimas apresentações em público, Weber opôs-se energicamente às formulações depreciativas que Oswald Spengler dedicara a Marx, numa conferência. “Se Karl Marx saísse do túmulo hoje e olhasse em volta, teria razão para dizer, apesar de algumas discrepâncias importantes: o que vejo é realmente carne da minha carne, sangue do meu sangue” (Baumgartem, 1964:554).

De qualquer modo, é evidente que há um ponto em comum entre as preocupações de Marx e de Weber, e que não deve ser subestimado: a posição central atribuída aos problemas da sociedade capitalista na obra de ambos, ainda que com a diferença de que num caso isso conduz a uma crítica revolucionária e no outro a uma crítica marcada pela resignação.

Gabriel Cohn em Crítica e Resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 118.


Observação

Agradeço a leitura atenta e generosa de Catarina Eya Campiello Contipelli.

Notas

1. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), pensador alemão de influencia definitiva sobre a obra de Karl Marx.

2. ASA é o apelido da Agremiação Sportiva Arapiraquense, time de futebol sediado na cidade de Arapiraca, em Alagoas.

3. Ver, nas referências, DARDOT & LAVAL (2016).

4. Ver, nas referências, CLASTRES (2017/1974).

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1951].

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1965].

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro, Zahar: 2004.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [1974].

COHN, Gabriel. Crítica e Resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DELEUZE, Giles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” In: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.

GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social. Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida: Ideias & Letras, 2007.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2013.

LALLEMENT, Michel. A história das ideias sociológicas: das origens aos contemporâneos. Petrópolis, Vozes, 2019.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011 [1867].

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005 [1848].

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia das Letras, 2009 [1949].

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2007.


Imagem em destaque: Marx (barba negra, ao centro) e Engels (barba ruiva, logo atrás de Marx) na área de impressão do jornal Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung). Obra de E. Capiro, 1849. Domínio público, via Wikimedia Commons.

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Um comentário em “Em defesa da defesa de Karl Marx

  1. Camarada, excelente artigo. Inclusive, vale reler o ensaio do Chico de Oliveira em que ele afirma diretamente ser o neoliberalismo um totalitarismo. É aquele belo artigo que tem no título “privatização do público, destituição da fala e anulação da política”. Gracias, camarada!

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