Textos para o bom combate

Textos para o bom combate

Por mais que me esforce, é cada vez mais difícil encontrar uma forma de mobilizar alunos e alunas para o exercício da leitura. Entre redes sociais e conteúdos incrivelmente apelativos, o estímulo oferecido pelos textos, sobretudo aqueles com maior densidade teórica, não parece suficiente para comover indivíduos em busca de alguma ocupação mental. Contudo, em tempos de radicalização política, resta um último argumento: a reunião familiar. Seja a ceia de Natal ou o churrasco de final de semana, a certeza do confronto de “ideias” em família é algo muito mobilizador. Pode ser o tio reacionário que comanda a churrasqueira; o primo com camisa do Che Guevara; a avó que se informa pela corrente de WhatsApp; etc. Sempre existe a possibilidade de conflito e, nesse caso, o desejo de trucidar o adversário pelo uso da oratória. Tudo isso, claro, supondo que não exista irritação suficiente para a boa e velha troca de sopapos.

Para um desempenho satisfatório nessa disputa, é importante (1) possuir um discurso articulado e (2) um razoável acúmulo de conteúdos. Para o primeiro caso, há soluções até práticas para melhora das habilidades de comunicação. Aulas de teatro costumam ajudar muito. Assistir a bons oradores em ação, para depois emulá-los – primeiro diante do espelho e depois na peleja efetiva -, também pode contribuir para uma maior desenvoltura e a construção de um estilo próprio. Terapias psicológicas são indicadas em situações mais agudas de timidez e bloqueios derivados de traumas. De resto, usando uma imagem bastante batida, a ideia é se jogar na discussão e combater o bom combate. Só é possível se aperfeiçoar na técnica e na arte da prosopopeia, afinal, pelo exercício recorrente. Desde que tenha preparo sobre um determinado tema – leituras, pesquisas, dados -, fale, fale sem medo de soar ridículo. Mas, repetindo, desde que saiba com clareza do que está falando. Isto nos leva ao principal propósito destas linhas, enquanto iniciativa de estímulo à leitura.

Uma lista enxuta, mas útil

A lista de títulos que oferecerei nas próximas linhas, por óbvio, não é exaustiva em qualquer sentido. Essas são algumas referências introdutórias de grande utilidade para se aventurar nas ciências humanas e, por extensão, no debate político contemporâneo. Para um início mais “leve”, vale conferir nossa principal referência em artigos científicos de variados temas e disciplinas em ciências humanas e sociais: a Revista Brasileira de Ciências Sociais. Essa publicação da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) edita artigos que contemplam as humanidades de modo geral, mas com maior ênfase na tríade clássica formada por Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Além da divulgação de resultados de pesquisa sobre os mais variados interesses científicos, também há publicação periódica de resenhas, o que oferece boas indicações para leituras de maior fôlego e relevância acadêmica. De forma adicional, se deseja começar pelos artigos e procura uma lista mais abrangente de periódicos, há uma boa seleção aqui no portal, no seguinte artigo: Referências para pesquisa – Revistas científicas em humanidades. Ainda nas sugestões já abordadas neste espaço, há duas indicações inescapáveis: o Conceitos essenciais da Sociologia (Giddens & Sutton, 2017, 2ª edição revisada) e a Coleção Primeiros Passos, publicada pela Editora Brasiliense desde 1980. Nesses dois casos, pensando no conjunto das obras, temos uma introdução conceitual e temática bastante ampla, embora superficial, aos elementos básicos das estruturas e processos sociais que compõem a realidade. Para entender melhor o teor e a serventia desses materiais, leia Ciências Humanas: três sugestões para iniciantes.

Passando às indicações originais e que podem contribuir mais diretamente aos confrontos de inspiração político-eleitoral, duas obras do pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004) são indispensáveis. Quanto às incursões do autor pela Filosofia Política, temos Estado, Governo e Sociedade: Fragmentos de um dicionário político (2017, 25ª edição brasileira, a partir da 2ª edição italiana, de 1995). Nessa obra é possível compreender as distinções entre público e privado; a noção de sociedade civil; os conceitos de Estado, poder e governo; e, por fim, as definições e a distinção entre democracia e ditadura. Essas noções elementares do léxico político são fundamentais para perceber com clareza do que se está a falar quando se discute o papel do Estado; os limites da democracia; as diferentes interpretações sobre o que é e qual o papel da sociedade civil; os confrontos entre interesses públicos e privados; etc. Considerando a recente eleição presidencial no Brasil (2022), marcada pela perseguição fratricida de “direitistas” contra “esquerdistas” – sendo que a maior parte da população provavelmente não tem uma ideia precisa do que esses termos significam -, o título indicado é Direita, Esquerda: Razões e significados de uma distinção política (2012, 3ª edição brasileira, 1ª edição italiana em 1999).

Para além da falta de leitura, outro problema recorrente em nosso tempo diz respeito ao uso das palavras sem qualquer preocupação quanto à precisão em sua definição. Certos conceitos são repetidos à exaustão sem que se saiba, com certeza, de que tratam. Um caso exemplar é o do movimento político-filosófico conhecido como fascismo. Ainda que, felizmente, muitas sociedades saibam o mínimo necessário para evitar a “sedução” desse regime político – ultranacionalista, ditatorial, violento, inimigo das liberdades individuais etc. -, talvez seja útil entender melhor sua origem histórica, estrutura interna e implicações. Embora seja fácil dizer que alguém é fascista, definir o fenômeno é desafiador. Para tanto, fica como recomendação uma obra de Umberto Eco (1932-2016) que, tal qual os buracos negros, é de gigantesco conteúdo, pequeno tamanho e densidade que tende ao infinito: O fascismo eterno (1997). Eis um texto que busca atacar o caráter escorregadio e polissêmico desse termo, analisando, entre os muitos possíveis “fascismos”, certos elementos unificadores, presentes em todas as suas versões.

Uma vez endereçados alguns importantes conceitos presentes nas discussões políticas recentes, podemos passar aos grandes pensadores. Um bom começo são os dois volumes organizados pelo saudoso professor Francisco C. Weffort (1937-2021) em Os clássicos da política (1989). As obras possuem breves introduções ao pensamento de grandes autores da política, com textos do próprio Weffort e de outros notáveis intelectuais brasileiros (Renato Janine Ribeiro, Leonel Itaussu Melo, Régis de Castro Andrade, Célia Galvão Quirino, entre outros). Além das explicações iniciais sobre cada um desses luminares, também há trechos selecionados de suas principais obras. No volume 1, temos Maquiavel (1469-1527), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e os escritos de O Federalista (autoria de Hamilton, Madison e Jay, publicado entre 1787 e 1788). Já no volume 2, a seleção conta com Edmund Burke (1729-1797), Immanuel Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Alexis de Tocqueville (1805-1859), John Stuart Mill (1806-1873) e Karl Marx (1819-1883). Embora fora de catálogo há algum tempo, é presença fácil em bibliotecas físicas e eletrônicas, de modo que o leitor interessado não terá grande dificuldade em localizar esse material. Ainda como introdução aos grandes pensadores, sobretudo na Sociologia, o Etapas do Pensamento Sociológico (2008/1967), de Raymond Aron (1905-1983), é uma referência fundamental por dois motivos. Primeiro, a lista de autores com os quais trabalha: Montesquieu, Auguste Comte (1798-1857), Marx, Tocqueville, Émile Durkheim (1858-1917), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Max Weber (1864-1920). Segundo, o fato de oferecer um ativo que está em grande falta no mercado das ideias: uma leitura crítica de boa qualidade quanto à obra de Marx.

Por fim, mais duas indicações. A primeira serve a propósito semelhante à indicação sobre o fascismo: desmistificar um conteúdo do qual muito se fala e pouco se entende. Refiro-me ao livrinho tão curto quanto instrutivo, de Jorge Grespan, intitulado Marx: uma introdução (2021). Nenhum outro autor é, a um só tempo, tão atacado e tão pouco lido quanto Marx. Aliás, pior: os fãs também parecem não entender coisa alguma de suas ideias. Esteja você interessado em criticar ou elogiar o pensamento marxista/marxiano, essa é uma obra introdutória que combina concisão e alguma profundidade. Os conceitos básicos de alienação, mercadoria, capital, fetichismo, ideologia, práxis e revolução estão todos lá. A segunda recomendação vem como um desafio e, também, um toque de atualidade. A obra Rituais de Sofrimento (2012), da socióloga Silvia Viana, merece não menos que o epíteto de titânica. Quando uma parte da “inteligência” brasileira procura reabilitar aberrações como o Big Brother Brasil, afirmando tratar-se de entretenimento com apelo popular, esse livro surge como absolutamente essencial. A autora utiliza os reality shows como elemento orientador de uma análise em que são articulados e criticados, com sofisticação e radicalidade, a cultura do espetáculo, a barbárie do mercado de trabalho contemporâneo, a normalização da humilhação como divertimento e, em síntese, o cotidiano do absurdo com o qual somos obrigados a lidar. Em outras palavras: sofremos, mentimos, tentamos manter o emprego, rimos da tragédia alheia, somos vítimas e reprodutores da insegurança social. Para entender o Brasil e o mundo para além das crises econômicas, com consciência de nossa falência ético-moral, essa é a obra.

Boa sorte e bom combate!

Tive a oportunidade de assistir a um documentário que marcou minha percepção sobre debates de ideias. Trata-se de Best of Enemies (direção de Robert Gordon e Morgan Neville; EUA, 2015; 88 minutos), um registro sobre a série televisionada de controvérsias entre dois titãs do pensamento estadunidense: Gore Vidal (1925-2012) e William F. Buckley Jr. (1925-2008). Ambos se enfrentaram durante as convenções partidárias da eleição presidencial de 1968, nos Estados Unidos. Vidal representava o pensamento liberal-progressista e Buckley era a face do ideário conservador. Enquanto democratas e republicanos definiam seus candidatos à presidência, os dois comentavam esses acontecimentos e trocavam farpas, algumas bem pontiagudas, na tela da rede de televisão ABC. Embora eu seja um defensor ardoroso das tertúlias civilizadas, quiçá monótonas, essa chamou minha atenção por uma rara combinação de agressividade e profundidade analítica. Dois pontos de vista radicalmente diferentes, duas personalidades exuberantes, ódio mútuo e uma contenda intelectual que sintetizava tudo que estava em debate nos Estados Unidos ao final dos anos 1960. Fecho estas linhas com essa indicação de documentário por dois motivos: porque esses são debatedores que vale a pena imitar; e porque ele mostra que mesmo a mais animada das discussões não deve, em hipótese alguma, descambar para agressão física.

Obras indicadas

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [1967].

BOBBIO, Norberto. Direita, Esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 3ª edição brasileira, 1ª edição italiana em 1999.

_______________. Estado, Governo e Sociedade: Fragmentos de um dicionário político. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017. 25ª edição brasileira, a partir da 2ª edição italiana, de 1995.

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018 [1997].

GRESPAN, Jorge. Marx: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2021.

VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2012.

WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política, vols. 1 e 2. São Paulo: Editora Ática, 1989.


Imagem em destaque: foto do último debate das eleições presidenciais de 1960 nos EUA, realizado no dia 21 de outubro daquele ano. A imagem mostra Richard Nixon (à esquerda) e John F. Kennedy (apontando para o alto). Associated Press, domínio público.

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