A Ucrânia aos olhos da ignorância empreendedora

Os gregos criaram um ideal educativo orientado por preocupações filosóficas. Sócrates (c. 470 a.C. – 399 a.C.) foi um dos fundadores do que se convencionou chamar, com seus problemas, de “pensamento ocidental”. Por inspirar o questionamento e a reflexão crítica, foi condenado à morte. Matou-se o homem, permaneceu o legado intelectual. Atualmente, matamos o saber, de modo que nos sobram apenas carcaças humanoides. Essas carcaças querem empreender.

1. Comecemos pelo verbo “lacrar”

Recentemente, visitei a página de um dublê de quadrinista que possui a medicina como área original de formação e atuação. Uma combinação assaz interessante para alguém que, como eu, gosta de quadrinhos e doenças. Infelizmente, fui obrigado a deixar de lado a visita logo em seus instantes iniciais. Descobri que estava diante de mais um caso de pessoa que trocou as manifestações políticas esporádicas pela lacração sistemática. Aliás, talvez seja o caso de definir o verbo-conceito lacrar no sentido que adquiriu em nosso debate público. Trata-se da ideia de encerrar uma discussão com comentários e/ou frases de efeito que teriam impacto arrasador sobre o debatedor adversário. Essa assertiva fatal deve combinar recriminação, elementos morais e argumentação superficial, deixando prevalecer a pirotecnia discursiva e a intimidação. Quanto aos seus usuários, embora associada às posturas da esquerda, a atitude lacradora também está muitíssimo presente nas falas à direita – sejam elas liberais, conservadoras, fascistas etc. Essa digressão inicial é necessária posto que, no caso do quadrinista em questão, temos um lacrador destro que acusa a lacração canhota sem se dar conta de que o faz enquanto tenta lacrar.

2. Delírios, mistificações e afins

O exemplo em tela apresenta algumas características que, de tão batidas, podem ser consideradas um clássico da lacração direitista. Em suas redes, o doutor-quadrinista acaba por produzir um resumo de tudo que iria mal em nosso país, a começar pelas ideias. Temos, assim, a crítica radical ao onipresente “legado de Paulo Freire”; uma sociedade que não cultiva adequadamente os valores do empreendedorismo; a existência de uma suposta cabala ultra-esquerdista que dominaria toda e qualquer universidade pública; a ideia de que o Estado real é sempre uma reprodução do pior do 1984 de George Orwell; etc. Além do exemplo com que iniciei o texto, alguns canais de desinformação nas redes sociais, sobretudo no YouTube, parecem empreender uma guerra sem fim contra o Iluminismo e seu espólio. Basta notar que já não é mais suficiente achincalhar Paulo Freire (1921-1997), o alvo da vez é o próprio Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Anseiam o retorno da Idade Média e acreditam que o mundo estaria muito bem se tivesse se contentado com as catedrais góticas da Europa.

Chega a ser cansativo, mas vamos lá. Os problemas da educação pública no Brasil são o resultado de uma combinação complexa de fatores. Podemos listar a atabalhoada Reforma Pombalina de nossa educação, ainda em tempos coloniais (séc. XVIII); a ampliação desordenada da oferta de vagas da educação básica, no sistema público, a partir do Golpe de 1964; o subfinanciamento crônico; a desvalorização da carreira docente; problemas burocráticos e gestão ineficiente; desigualdades regionais; etc. Antes que alguém pergunte, Paulo Freire nunca propôs “promoção automática”. O que se desejava, isto sim, era a possibilidade de um acompanhamento sistemático dos alunos com maiores dificuldades, a abordagem interdisciplinar e as avaliações por ciclos, entre várias outras iniciativas. Não se contribui para o avanço da educação com a criação de párias repetentes. Ora, se não houver inclusão e preocupação com as dificuldades de aprendizagem em escolas públicas, onde poderemos encontrar tais práticas? A suposta “culpa” de Paulo Freire é a resposta fácil e absolutamente tacanha para quem não tem condições de refletir sobre os nossos desafios no campo educacional. Respeitado internacionalmente e referência acadêmica inescapável, Paulo Freire tem sua cota de anacronismos e pode ser criticado, sem dúvida. Mas, antes de fazê-lo, ao menos leiam sua obra.

A ideia de uma confraria marxista-leninista que dominaria todos os espaços possíveis em universidades, sobretudo públicas, é mais um indício do quão popular se tornou a moda dos chapéus de folha de alumínio. As universidades são espaços plurais, que permitem a manifestação de diferentes tendências político-ideológicas. Basta verificar linhas de pesquisa, trabalhos publicados e declarações públicas para notar que nem todos vestem vermelho – a depender da instituição, é bem provável que essa seja uma minoria cromática. O que ocorre, muitas vezes, é uma misturada analítica bizarra: algumas pessoas confundem a leitura e estudo das obras de Karl Marx (1818-1883), em certas disciplinas e por certos docentes, com rituais de invocação demoníaca. E se você acha exagero tal associação, vai encontrar vídeos na internet em que pessoas debatem, com ares de seriedade, eventuais inclinações satanistas de Marx.

Talvez devêssemos refletir sobre os departamentos de Antropologia que, muitas vezes, por questões teóricas ou institucionais, passam ao largo de qualquer marxismo. Ou os departamentos de Ciência Política, coalhados de conservadores e liberais. Ou seria o caso, ainda, de citarmos departamentos de Administração e Economia, que muitas vezes demonstram um pendor privatista que beira o sentimento religioso. Aliás, aquela deputada paulista arquiconservadora, dada a performances teatrais e discursos herpetológicos, não seria docente de um curso de Direito em instituição pública?

Ah, o Estado! O Estado que constrói e gerencia escolas, institutos de pesquisa, hospitais, redes de infraestrutura e variados serviços de promoção do bem coletivo. O Estado que organiza o debate público e promove a atividade legislativa; que garante o cumprimento das leis. O Estado que, em momentos de crise, tem suficiente capacidade de mobilização para salvar milhões de pessoas: por vacinas, distribuição de alimentos, defesa civil ou militar. O Estado que colocou pessoas e satélites na órbita terrestre. O mesmo Estado que, com inúmeras iniciativas, atua para diminuição das desigualdades sociais: com bolsas, cotas, serviços públicos e até a redistribuição direta de recursos, de dinheiro. Contra o Estado ergue-se a retórica infantil anarcocapitalista, a pseudorracionalidade privatista e o delírio de uma contradição tripartite insuperável entre democracia, sociedade civil e instituições estatais. Quem sabe seja o caso, portanto, de explicar à Alemanha, Botswana, Canadá, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, França, Finlândia, Islândia, Israel, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Suécia, Uruguai, entre algumas outras, que essas democracias sequer deveriam existir, posto que seria impossível um Estado de dimensões razoáveis conviver com uma sociedade atuante, em um regime de soberania popular.

Igualmente, é importante reforçar que instâncias internacionais de articulação política, como a ONU (Organização das Nações Unidas) ou a OMS (Organização Mundial da Saúde), servem como fóruns para o debate entre nações, elaboração de políticas públicas globais e espaços para evitação de tragédias, sejam elas militares ou pandêmicas. Possivelmente seja necessário, enfim, trocarmos a fábula globalista por fatos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a erradicação da varíola, obras da ONU e OMS, respectivamente.

3. A falta que faz um empreendedorismo

E chegamos à propalada falta de visão empreendedora dos brasileiros. Essa ausência, somada às terríveis saúvas, seria a raiz de todos os nossos males. De partida, podemos citar a simplificação e generalização do pretenso diagnóstico, como se aqui fossemos todos incapazes de criar negócios, quaisquer que sejam eles. Nessa avaliação, a solução para nossos problemas não passaria pela superação de nossas pornográficas desigualdades sociais; também não se trata de lidar com a herança escravocrata e o racismo; não é preciso discutir a concentração fundiária e o deserto da soja; tampouco faltam recursos para educação. Não, a superação dos problemas do Brasil está diretamente ligada à multiplicação das disciplinas de empreendedorismo em todos os níveis de ensino, do jardim de infância à livre-docência. Qual a utilidade das Ciências Humanas, da Filosofia e dessas outras áreas do saber que não geram valor, não criam empresas e nem contribuem para que você seja seu próprio patrão? Por que gastar tempo com Geografia Humana se você pode ganhar muito mais dinheiro empreendendo com sua bicicleta, entregando comida ladeira acima e batalhando para comprar sua primeira Ferrari?

4. A sua ignorância empreendedora

Justamente pela redução das cargas horárias nas disciplinas de Filosofia, Geografia, História e Sociologia, você agora não conhece o conceito de autodeterminação dos povos e não entende porque a invasão russa da Ucrânia atenta contra esse valor civilizatório. Você não compreende de que trata a geopolítica e, por isso, não sabe que a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), fundada em 1949, foi uma das várias iniciativas de contenção da expansão soviética, sobretudo militarmente. Uma iniciativa da América do Norte e Europa Ocidental, criada no contexto da Guerra Fria, a OTAN não desapareceu com o colapso da União Soviética. Pelo contrário, continuou a se expandir e hoje conta com 30 países, incluindo as repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia) e Polônia, que fazem fronteira com a Rússia. Você não sabe o que é imperialismo e não faz ideia do que são zonas de influência, de modo que não percebe como os avanços europeus e estadunidenses sobre a Ucrânia representam uma tentativa de abocanhar uma nação antes sob influência política russa. Ignora completamente o fato de que a Ucrânia possui células neonazistas em atividade e não faz a menor ideia do que é o Batalhão Azov. Provavelmente não sabe que Vladimir Putin (n. 1952) tem aspirações czaristas, promove políticas homofóbicas da pior espécie e não tem qualquer apreço pela democracia. E não calcula que essa invasão estúpida é o resultado de uma complexa combinação que envolve um choque entre imperialismos, relíquias da Guerra Fria, uma nação institucionalmente fraca (a Ucrânia), o ressurgimento de forças nazistas, um autocrata sem qualquer disposição democrática etc.

Você não sabe de nada disso e seus filhos provavelmente saberão menos ainda. Mas fique tranquilo! A sua ignorância geográfica, histórica e política será mais que compensada pelos conhecimentos adquiridos em cursos do SEBRAE, aulas de empreendedorismo e cuidadosa leitura dos termos de uso dos aplicativos de entregas. E aí chegará um dia glorioso em que, livre da influência nefasta de Paulo Freire, você poderá se informar exclusivamente por grupos de mídia capazes de explicar em detalhe, com absoluta neutralidade, conflitos como esse entre Rússia e Ucrânia. Talvez os mesmos grupos cujos jornalistas lamentam a morte de gente branca, loira e de olhos azuis, enquanto ignoram completamente o morticínio interminável de gente negra nos confins da África. Os mesmos grupos que resumem o conflito ao fato de Putin ser feio, malvado e cara de mamão. (Ele até é tudo isso, mas desconfio que esse conflito seja um pouco mais difícil de explicar.)

Um empreendimento que nunca sai de moda em nosso país é a ignorância. Em franca expansão, a ignorância consta das matrizes curriculares de nossas instituições de ensino, em todos os níveis.


Imagem destacada: A morte de Sócrates, óleo sobre tela. Por Jacques-Louis David, 1787. Domínio público.

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