Desagradar ao cliente para servir ao indivíduo

Nesta retomada das publicações do Portal, decidi dar maior atenção aos artigos sobre política. Embora este seja um espaço cujo subtítulo diz Textos, análises e materiais de estudo sobre administração e gestão, creio que seria o cúmulo da alienação fazer de conta que nada se passa no Brasil e no restante do planeta. Pandemia, acirramento político, o renascimento de regimes ultranacionalistas pela Europa, biomas que estão a se tornar carvão… Enfim, a lista de problemas globais é extensa. Desse modo, acredito que produzir conteúdo referenciado numa realidade tão complexa e desafiadora é uma urgência.

Mas eis que tenho uma desagradável surpresa ao conferir o número de assinantes do Portal. As adesões pararam e, pior, teve gente que foi embora. Isso provoca alguns questionamentos. O “problema” diz respeito à temática política? Ou talvez incomode que a atual administração federal seja criticada? Pode ser, ainda, que a falta de textos sobre metodologia de pesquisa não esteja a agradar o público mais voltado aos debates acadêmicos. Todas essas são boas explicações, que levam a uma reflexão sobre a relação entre quem produz conteúdo e seus “consumidores”. Uma situação não muito diferente daquela presente no relacionamento entre professores do ensino superior privado e seus alunos e alunas.

A solução é agradar ao leitor/consumidor?

A ideia é agradar? Agradar sempre? Essa pergunta aparentemente banal comporta um conjunto amplo de linhas de discussão. Pensando em alguns ícones do universo da produção e consumo, temos empresários que apostam na originalidade de suas ideias e, desse modo, nutrem relativo desprezo pelo desejo do consumidor. Entre anedotas e exageros, podemos colocar Henry Ford e Steve Jobs nesse primeiro grupo, que valoriza a inovação para além daquilo que as massas conseguem imaginar de imediato. Por outro lado, existem aqueles que prestigiam a satisfação do cliente a todo custo. Pelo uso de pesquisas de mercado, estudos sobre hábitos de consumo e assemelhados, a proposta é descobrir o que agrada ao cliente do modo mais exato.

As duas abordagens – que representam extremos – têm seus problemas. Senão, vejamos.

No primeiro caso, temos a situação típica da preocupação voltada ao produto, ao invés do cliente. Em outras palavras: se a sua criatividade é capaz de imaginar produtos como um Ford modelo T ou um iPad, talvez você possa se dar ao luxo de desprezar a pesquisa de mercado. Inovações verdadeiramente disruptivas, dessas que atendem desejos que nem sabíamos que existiam, podem ser muito bem-sucedidas comercialmente. Cabe perguntar, todavia, quantos Steve Jobs ou Henry Ford surgem a cada geração. Não me parece um modelo de negócio adequado a qualquer empreendedor, portanto.

Quanto à segunda visão, do cliente sempre feliz, a pergunta é: vale tudo? Vale rebaixar preços e/ou qualidade? Pensando nos produtores de conteúdo, é aceitável entregar o que o espectador/leitor deseja, por mais bizarro que seja tal anseio? Podemos considerar razoável nadar numa banheira de Nutella, propagar discurso de ódio ou jogar água fervendo na cabeça porque isso vai agradar à plateia? Ou, pensando no consumo mais tradicional, se a clientela quer ir ao shopping aos domingos, a solução é diminuir o descanso dos empregados? Se todos querem mais celulares, a um preço menor, vamos produzir tudo com trabalho precário nos confins da Ásia?

Talvez a solução seja desagradar ao cliente, ao sequer considerá-lo desse modo

Como assinalei, o foco do texto está nos casos extremos justamente para evidenciar elementos mais úteis ao debate. Claro está que existem inúmeras possibilidades entre um polo e outro. E existe, ademais, o meu cenário – que é o deste Portal e do meu papel como docente. Acredito numa resposta bastante radical para o questionamento colocado neste texto. Não se trata de agradar ou desagradar potenciais clientes: trata-se, antes, de rejeitar ativamente a relação de compra e venda. Este espaço não está preocupado em agradar ou desagradar ao leitor, o objetivo fundamental é a produção de análises críticas e bem fundamentadas da realidade. Pode ser que isso resulte em um público de quatro ou cinco pessoas por toda a eternidade? Sim, de fato, é possível. Mas esse é um risco que se corre ao produzir conteúdo sério, que não envolve experimentos do tipo “o que acontece se eu comer maionese vencida há seis meses?”

Finalmente, a relação de clientela não deveria se estabelecer no processo de formação, na dinâmica entre alunos e professores. Muitas vezes, para que a pessoa seja capaz de adquirir autonomia intelectual, é desejável que se imponha um regime de estudos mais rígido ou que se estimule a pesquisa por conta própria. Cabe ao docente dizer que existe uma biblioteca, fontes de pesquisa e que não é mais seu papel pegar o aluno pela mão, como se estivéssemos no ensino fundamental. Igualmente, ele deve ter a necessária liberdade para incomodar aqueles que assistem suas aulas: para citar o comportamento inadequado; realizar a aula enfadonha que requer conteúdo; trazer o debate do tema espinhoso; e assim por diante. Para oferecer um bom serviço educacional é preciso, portanto, rejeitar a relação comercial, ao menos naquilo que se desenvolve em sala de aula. Antes uma pessoa irritada e bem formada que outra muito feliz, mas iludida.

Concluo dizendo que o diálogo com os clientes, por aqui, é zero. Pelo simples fato de que os enxergo como leitores, colaboradores, parceiros, até como doadores; jamais como clientes numa relação de compra e venda.


Foto em destaque: Negative Space via Pexels.com


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