Falcatruas pedagógicas

Para Vanessa Miyashiro, amiga de longa data e influência primordial em minha formação intelectual.


O propósito deste ensaio é elencar mitos difundidos por certas abordagens pedagógicas. Em outras palavras, o que se deseja é mostrar como o senso comum mais precário colonizou os processos educativos e difundiu asneiras que merecem combate enérgico. Considerando a área de atuação do autor, privilegiar-se-á a experiência pedagógica em nível superior.

1. O aprendizado deve ser sempre divertido? Não.

Na verdade, várias atividades de aprendizado podem ser chatas – embora fundamentais. Pensemos no caso da leitura. Algumas graduações possuem cargas de leitura um tanto exigentes – na casa das centenas de páginas por semana. Por maior que seja o prazer resultante dessa atividade, ela requer isolamento, concentração, disposição, etc. Essa não é uma caminhada ao ar livre, em dia ensolarado: trata-se, antes, de passar muitas horas em bibliotecas, escritórios, mesas e escrivaninhas, debruçado sobre livros. Além disso, nem sempre vamos nos dedicar apenas à leitura dos autores e obras que mais nos agradam. Uma formação ampla e diversa requer o contato com uma bibliografia abrangente – o que pode incluir textos enfadonhos.

Vejamos meu exemplo. Como aluno de graduação em Ciências Sociais, em uma semana “tranquila” costumava enfrentar ao menos 200 páginas de textos acadêmicos. A jornada de estudante previa quatro horas em sala de aula e mais seis na biblioteca – com horas adicionais aos finais de semana. Além desses calhamaços, havia o desafio de lidar com autores como Auguste Comte, Herbert Spencer, Robert K. Merton… Todos importantes para minha formação, sobretudo no campo da sociologia, mas todos maçantes e capazes de curar qualquer insônia. Essas atividades de leitura eram importantes? Com a mais absoluta certeza. Divertidas? Também posso dizer, com igual certeza, que não.

Por vezes, fico a refletir sobre o que pensam os professores que acreditam ser possível a substituição da leitura por “atividades lúdicas” que mais lembram jogos como “ligue os pontos”. Podemos dizer que essa é uma abordagem pouco realista, até irresponsável, dos processos de aprendizagem.

2. As atividades pedagógicas devem ser sempre dinâmicas? Não.

Este item é um desdobramento do anterior. Debates, gincanas, atividades em grupo, seminários, entre outras possibilidades, em doses moderadas, podem ser muito úteis. Contribuem para arejar uma disciplina de conteúdo árido ou oferecer um pouco de descanso em um semestre muito puxado. Podem ajudar, inclusive, para que os alunos desenvolvam capacidades relativas à comunicação e trabalho em equipe.

No entanto, na maior parte das vezes, as atividades pedagógicas são cansativas. Trata-se de lidar com novos conteúdos, com os quais não estamos familiarizados. Ler os textos todos do tópico anterior. Desenvolver o hábito da disciplina e concentração para o estudo. Enfim, o processo de aprendizado tem aspectos coletivos mas, na maior parte do tempo, é uma atividade solitária.

A pedagogia contemporânea afirma que devemos aprender a lidar com as características atuais de nossos alunos: agitação, falta de foco, imediatismo, urgência de novidades, etc. Para tanto, deveríamos oferecer tarefas agitadas, desfocadas, imediatas e novidadeiras. Pois bem, parece que a proposta é oferecer uma jarra de café com pó de guaraná a quem já está alvoroçado. Na verdade, o papel do educador deveria ser o de ensinar dedicação e determinação a quem ainda não possui tais qualidades.

3. A abordagem conteudista é sempre ruim? Não.

Outra inovação duvidosa, e que merece olhar mais atento, diz respeito à ênfase que se tem dado às competências no processo formativo. Num cenário de ensino básico público calamitoso, com estruturas degradadas, profissionais mal pagos e desmotivados, subfinanciamento crônico, entre outros problemas, a formação de alunos para o ensino superior acaba por ser tremendamente precária. Não raro, chegam aos bancos universitários pessoas com graves deficiências de alfabetização. Ora, cabe perguntar: como prescindir da exposição dos conteúdos mais elementares, aqueles que foram negados a esses alunos ao longo de mais de uma década em bancos escolares? Como sonegar fatos, processos, acontecimentos, fenômenos e conceitos basilares para sua formação? Como pedir que pesquisem e aprendam, de forma autônoma, aqueles que nunca foram ensinados a pesquisar e aprender desse modo?

A campanha que se faz contra a abordagem conteudista é, inclusive, discriminatória: vai prejudicar justamente aqueles que mais precisam de conteúdos, aqueles que foram submetidos a um sistema educacional prenhe de problemas. De forma clara: o estrago recai sobre a base da pirâmide social, os mais pobres. Ainda quanto à discriminação, também não se comenta o fato de que algumas das melhores instituições de ensino superior, no Brasil e no mundo, privilegiam a formação em bases conteudistas. USP, UNESP, UNICAMP, UFRJ, UFMG, Sorbonne, Oxford, Cambridge, Columbia, Cornell, Harvard, Princeton… Todas essas universidades, que formam os melhores profissionais e intelectuais, trabalham com professores que falam para suas classes – em uma abordagem conteudista das mais conservadoras. E, repito, formam os melhores, enquanto abraçamos a falácia de que devemos sonegar conhecimento aos nossos alunos e estimular a formação por competências – um modelo que não ataca as principais deficiências herdadas da educação básica.

4. Docentes devem sempre “encantar” seus alunos? Não.

Muitas vezes, o papel do docente é desagradar os alunos. Pela exigência de atividades pouco divertidas: 100 páginas de leitura de um autor fundamental, embora de texto massacrante. Por determinar tarefas rigorosas: trabalhos analíticos que requerem o entendimento de conceitos complexos, com a obrigação de um número mínimo de páginas (umas dez!). Por explicar ao aluno fulano, que está conversando desde o começo da aula, que deve se retirar e voltar na semana seguinte, após aprender bons modos.

O processo formativo comporta uma dimensão calcada na autoridade. Isso implica dizer que há obrigações, limites, exigências, tarefas pouco agradáveis, sacrifícios, etc. Fosse uma escolha despreocupada por parte dos alunos, talvez desejassem apenas passar noites agradáveis em atividades em grupo, da primeira à última aula do semestre. Mas não é assim que um processo formativo funciona. Existe uma autoridade que emana do professor, fruto de sua formação e conhecimento, e que lhe confere o direito de demandar certas atividades, disposições e comportamentos por parte dos alunos. Portanto, na sala de aula, o professor tem poder de mando: a ele cabe estabelecer atividades e fazer-se obedecer.

5. A escola pode resolver todos os problemas de nosso planeta? Não.

A escola, tomada como sinônimo de educação em todos os níveis, é um dos elementos mais relevantes na construção de um mundo mais democrático, igualitário e fraterno. Não há problema que não possa ser atacado pela via pedagógica: violência, desigualdade social, preconceito, intolerância, autoritarismo, etc. No entanto, a escola não é a entidade que, mágica e solitariamente, irá redimir todas as mazelas humanas. Essa tarefa cabe a todas as instituições que, de algum modo, interagem nos espaços públicos: o Estado em seus três poderes, partidos políticos, sindicatos, associações, organizações comunitárias, denominações religiosas, movimentos sociais, vanguardas artísticas… Aos problemas de caráter coletivo, temos de oferecer soluções que mobilizem o conjunto das sociedades. Donde se conclui, aliás, que escolas e professores, por melhores e mais importantes que sejam, são agentes desse processo e não super heróis saídos das páginas das histórias em quadrinhos.

6. O Brasil respeita e admira o trabalho dos professores e professoras? Não.

Não só não respeita e não admira como atua cotidianamente para degradação dessa profissão. Caso a situação calamitosa da docência mobilizasse nossa sociedade, veríamos manifestações cotidianas – tamanha a urgência desse problema. Infelizmente, isso está completamente fora da realidade. O que se nota é:

  • O silêncio ou as reclamações generalizadas quando, após repetidas situações de constrangimento, essa categoria profissional finalmente decide realizar uma greve;
  • O desprezo diante de situações em que docentes, no exercício de seu direito democrático à manifestação, são agredidos por forças policiais;
  • Pais ou mães que reclamam do professor do filho pela manhã para, à noite, em uma faculdade, atrapalhar a aula do seu próprio professor – fazendo o que uma criança faria (conversas paralelas, posturas agressivas, situações de desacato, etc);
  • O completo descaso com os ridículos salários pagos aos docentes do Brasil, do ensino fundamental ao superior, tanto na rede pública quanto nas instituições privadas. Não há qualquer indício de que a sociedade vá se mover, de forma decidida, na defesa de seus educadores;
  • O silêncio quanto à violência que se comete, por algumas das maiores autoridades deste país, à figura de Paulo Freire. Educador mundialmente respeitado, com milhares de citações em artigos, dissertações e teses, ensinado em cursos de pedagogia das melhores universidades do planeta, e que é vítima de abjeta campanha difamatória;
  • A falta de empatia para com o professor, tratado como “vagabundo”, quando este se vê na contingência de solicitar afastamento por questões médicas. Após jornadas exaustivas, falta de reconhecimento, baixos salários, agressões psicológicas ou físicas, ainda há quem diga que o profissional recolhido por motivo de saúde “não quer trabalhar”.

O que se nota, enfim, é o sadismo de nossa sociedade para com seus educadores.


Foto de George Becker no Pexels.com.


Adquira e colabore para manutenção do Portal Sociologia da Gestão:

Manual de introdução à pesquisa acadêmica nos ensinos médio e superior. Contém informações relevantes e dicas práticas que ajudarão no desenvolvimento da pesquisa e do trabalho final de curso. O livro busca atender as demandas de estudantes do ensino médio que estão em contato com a pesquisa e estudantes universitários que precisam escrever artigos e trabalhos de conclusão de curso. O material foi escrito em linguagem simples e direta, com exemplos ilustrativos e comentários explicativos. Trata-se, portanto, de uma obra cujo maior objetivo é socorrer de forma prática o estudante que precisa desenvolver sua pesquisa e encontra dificuldade com os percursos acadêmicos.