Max Weber e os limites da racionalização

Ao tratar do pensador alemão Max Weber (1864-1920) com meus alunos de graduação, dedico especial atenção ao conceito de racionalização. Para o neófito nas discussões weberianas, tentemos descrever esse processo social, de forma bastante sintética. Tratar-se-ia da paulatina segregação do pensamento mágico e religioso a uma esfera própria e autônoma de atuação, enquanto a razão assumiria crescente protagonismo na orientação de nossas ações sociais. Vamos traduzir. Houve um tempo em que a religião e a fé tinham um papel de destaque na vida dos indivíduos/agentes sociais. Isso significa que, tivesse você um problema de saúde, conflito amoroso, planos de investimento, dúvidas sobre a lavoura, etc, a solução viria do diálogo com um sacerdote ou de uma orientação divina. Em tudo, havia a presença do universo metafísico, daquilo que pertence ao plano espiritual: todas as respostas viriam de Deus ou dos deuses.

Desde o século XVI, por outro lado, assistimos à crescente complexificação de nossas atividades econômicas. Também tivemos, desde o XVIII, o desenvolvimento do capitalismo industrial e a renovação filosófica propiciada pelo Iluminismo. E, ao longo de uma coisa e outra, o crescente avanço das abordagens experimentais e formas científicas. Em lugar da orientação mágica e religiosa, passamos a lidar com formas mais especializadas orientadas pelo planejamento, cálculo, matemática, modelos de gestão, etc. Atualmente, cabe ao padre e ao pastor somente a orientação sobre o caminho da salvação e das condutas que agradam a Deus. Para todo o resto, temos consultores, gerentes de banco, médicos, sociólogos, etc. O mundo, enfim, desencantou-se.

Esse, em suas inúmeras limitações, é o discurso que faço aos alunos. Peço desculpas aos mestres Gabriel Cohn e Antônio Flávio Pierucci (este in memorian), pelas limitações analíticas. E as peço, também, àqueles que têm de assistir às aulas, por vezes um tanto complexas e abstratas. Entre limitações e chatices, no entanto, tenho me perguntado sobre o que pensaria Max Weber caso caminhasse entre nós neste ano de 2019.

As formas racionais de compreensão do mundo estão sob ataque. A Terra, que era esférica até outro dia, parece oscilar entre a forma plana e a de uma rosquinha. Embora a “versão” esférica tenha um ponto de partida no século III a.C. e tenhamos acumulado evidências teóricas e experimentais desde então, com direito a uma infinidade de fotos da própria, isso não parece suficiente. Não basta que existam evidências sustentadas pela observação em bases metodológicas consistentes. Não bastam a física, matemática, ótica, balística, propulsão e os eventos da corrida espacial desde a década de 1950.

Ainda pensando no ataque à ciência, também não parece suficiente a erradicação da varíola e a incrível queda nos casos de poliomielite, sarampo, tétano, caxumba, difteria, coqueluche e outras doenças infectocontagiosas preveníveis por vacinas. Os trabalhos de Jenner, Pasteur, Salk e Sabin, entre tantos outros, podem ser perfeitamente descartados. Ainda que tenham, ao longo de gerações, evitado doenças capazes de mutilar e matar e que isso seja demonstrável de forma cristalina, talvez seja mais seguro recorrer a algum curandeiro internético. Afinal, o que dizer da biologia, medicina ou química, se podemos acreditar na dieta do açúcar demerara com limão siciliano para salvar nossos filhos do sarampo, não é mesmo?

Tais invencionices, amparadas na mais recente onda de repúdio ao pensamento científico, não deixam a administração de lado. Temos a moda das abordagens “quânticas”: o coach quântico; a administração quântica; gestão quântica; e outras barbaridades do gênero, largamente amparadas no desconhecimento geral sobre mecânica quântica, nanotecnologias e afins. Isso quando não se juntam cristais, energias, espíritos, as variantes quânticas todas e mais alguma degeneração da psicologia.

Assim, pergunto: onde está a racionalização?

Podemos responder – e talvez isso torne o quadro ainda mais desalentador – que a racionalização tem aparecido em alguns temas muito discutidos em nosso país. Nas muito propaladas reformas, por exemplo. A racionalidade da reforma trabalhista para aquecer a geração de empregos foi muito citada. A reforma da previdência, para reorganização das contas públicas, aparece a todo instante no noticiário. Sem discutir a efetividade de uma e outra (a trabalhista não gerou um emprego sequer), devemos considerar aquilo que o processo de racionalização, de forma isolada, não entrega. Vejamos. Precisamos criar empregos e acertar as planilhas do governo federal. Qual a efetividade dessas ações se criarmos empregos de baixa qualidade e não garantirmos uma velhice decente para nossos aposentados? Vale a pena reformar para eliminar direitos e garantias? Ou consertar contas e, ao mesmo tempo, precarizar empregos e canibalizar a velhice? Racionalidade sem conteúdo ético é uma das coisas mais perigosas de que se tem notícia: afinal, nada mais racional que matar um paciente para, ao mesmo tempo, dar fim a uma doença.

Considerando o que o mundo está a fazer da racionalidade, pobre Weber.


Foto em destaque: Pixabay em Pexels.com.


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