A gestão totalitária

Os conceitos de autoritarismo, ditadura e totalitarismo costumam gerar confusões. Em análises pautadas pelo senso comum, os três são reproduzidos como sinônimos – uma simplificação assaz problemática. Tentaremos, nas próximas linhas, sanar tal equívoco e perceber, também, como esses fenômenos se manifestam no universo da administração. Vamos falar, enfim, da gestão totalitária.

1. Definições de autoritarismo, ditadura e totalitarismo

O autoritarismo está vinculado ao desprezo pelo debate, à imposição de ideias e comportamentos. Um governo autoritário não lida bem com o contraditório, tende a hostilizar minorias, perseguir a oposição e ridicularizar a imprensa e a intelectualidade. Tais gestos de intolerância podem se tornar mais agressivos se o aparato repressivo receber orientações nesse sentido. Algo como um governante que apoia a máxima letalidade possível das forças policiais. No entanto, esse exagero de autoridade não se converte, necessariamente, em uma ditadura. Trata-se, aliás, de uma experiência perfeitamente possível: um governo democraticamente eleito, respaldado pelo voto popular, mas que, nos limites do que é permitido pela lei, tenta se impor de forma violenta. Numa situação de autoritarismo, o diálogo é paulatinamente substituído pela força.

Já em uma ditadura, como o nome sugere, há uma pessoa, grupo, casta, oligarquia e/ou assemelhados que passam a ignorar opiniões, vontades e desejos de toda sociedade. Para definição de um regime ditatorial, ao comportamento autoritário devemos juntar a eliminação dos freios institucionais – começando pelo fim das eleições livres e democráticas. Afinal, na maior parte das vezes, não há urnas, leis, códigos, judiciário, legislativo, opinião pública ou organismos internacionais capazes de colocar limites à essa força que passa a ditar, obrigar e coagir. Caso uma ditadura encontre resistências, ela pode optar por dobrar as apostas na ofensiva antidemocrática: censura, tortura, eliminação física… As possibilidades são muitas.

Quanto ao totalitarismo, passamos a lidar com uma construção que encarna um tipo bem mais complexo de organização política, social e cultural. Regimes totalitários possuem, em sua gênese, a radicalização de todo e qualquer autoritarismo. Nesse fenômeno, temos:

  1. Uma grande liderança que carrega consigo todas as respostas para todos os problemas. Ainda que tais respostas sejam estúpidas e os problemas inexistentes, é dever das massas reconhecer a “genialidade” daqueles que guiam a nação;
  2. Uma mensagem de salvação e transformação social, para superação da decadência. Sendo que tal decadência sempre deve estar ligada a um grupo social que se quer atacar e/ou exterminar;
  3. A infalível capacidade da liderança em apontar traidores – que, quase sempre, são injustamente culpados de maquinações delirantes e fantasiosas;
  4. Um plano para reconstrução de sociedades inteiras, dos elementos mais insignificantes aos grandes símbolos.

Trata-se de um regime tão específico que só poderíamos percebê-lo, sem qualquer possibilidade de confusão, em dois momentos históricos:

  • A Alemanha nazista, entre 1933 e 1945 (sobretudo entre 1939 e 1945);
  • O terror stalinista na União Soviética (1922-1953).

Outros exemplos podem ser considerados, como o regime fascista italiano (1922-1943), o regime de extermínio de Pol Pot no Camboja (1975-1979), o apartheid (1948-1994) na África do Sul ou, de forma mais recente, a Coreia do Norte – essa monarquia com iconografia comunista. Creio ser mais prudente, no entanto, citar como totalitários o nazismo e o stalinismo. As demais possibilidades listadas possuem alguns pontos capazes de suscitar controvérsia: ausência de fontes e informações suficientes, para superação de discordâncias historiográficas; modelos ideológicos não tão radicais; o alcance limitado; entre outros elementos.

Desse modo, o nazismo e o stalinismo foram tentativas de remodelar, por ideias, símbolos, valores, práticas sociais, comportamentos, iconografia, história, etc, sociedades inteiras. Uma remodelação à imagem de ideais que emanavam de líderes absolutos e que se impunham de forma brutal. Tais regimes, autoritários e ditatoriais, queriam reconstruir de forma radical o mundo. De um lado, a Alemanha, com o objetivo de um mundo fundado na totalidade da “pureza ariana”. De outro, a União Soviética e o delírio de um mundo permanentemente vigiado por Stalin, contra a possibilidade de qualquer desvio ideológico. Regimes de controle total, como se nota.

2. A gestão totalitária: o controle da mente

Além do que foi citado até aqui, os regimes totalitários possuem uma característica distintiva adicional: eles querem controlar nações, sociedades, grupos e pessoas, mas querem fazê-lo ao nível das consciências. O propósito é controlar aquilo que as pessoas de fato pensam. O que só ousamos refletir na completa privacidade de nossas mentes e que, em princípio, estaria a salvo dos aparatos repressivos e aparelhos ideológicos. No entanto, em condições totalitárias de existência, nossos neurônios devem se ocupar exclusivamente daquilo que o Estado e o líder dizem ser correto e apropriado. Caso contrário, conforme descrito em 1984 (George Orwell, 1949), existe a possibilidade de que um representante do poder totalitário abra sua cabeça, a marretadas, para enfiar a “verdade”.

Tais regimes tiveram seus exemplos de gestão totalitária. No nazismo, a força paramilitar das SS (Schutzstaffel) foi um modelo de “eficiência” na implementação dos horrores do Holocausto. Os campos de concentração e extermínio foram verdadeiras fábricas de produção em massa de cadáveres: com planilhas, documentos, arquivos, maquinário, gerentes, metas de produtividade, etc. Um encontro grotesco entre produtividade, industrialismo e aniquilação de inocentes.

No stalinismo, se não foi um modelo de eficiência, a burocracia soviética tornou-se parte da máquina de opressão da sociedade. Repartições públicas intermináveis, com funcionários a encarnar esfinges e seus enigmas, para solicitação das necessidades mais banais às mais complexas – em infinitos formulários, precedidos por infinitas perguntas. Fora, claro, o medo da punição exemplar por falhas em atingir os objetivos determinados pelos burocratas do Partido e seus planos quinquenais. Em um mundo de impossibilidades, desagradar o “Guia Genial dos Povos” poderia resultar em humilhação, Sibéria ou execução. Mas, enfim, atingindo ou não a meta, você poderia tombar vítima de um Grande Expurgo.

3. A gestão totalitária: uma metáfora para os dias atuais

A noção de totalitarismo deve ser utilizada com cuidado para análise de situações do mundo presente. Não há, em curso, uma atrocidade da magnitude do Holocausto (e, esperamos, nunca mais ocorrerá algo do tipo). Também não há registro recente de um sistema de gulags na Rússia. Esses regimes, no entanto, oferecem metáforas para reflexão do que vivemos atualmente.

Quando qualquer ideia fora dos padrões considerados aceitáveis é imediatamente ridicularizada, talvez seja importante refletir sobre a efetividade da liberdade de expressão. Igualmente, devemos nos preocupar quando dizemos a um subordinado que ele deve se dispor a tudo, absolutamente tudo, para bater uma meta. Ou quando dizemos, ainda, que ele deve vestir a camisa da empresa; consumir somente seus produtos; e atuar a todo instante, todos os dias, como um promotor de vendas. Nesse discurso total, a empresa, também chamada de “família”, deve aniquilar a concorrência e conquistar o mundo. Não há salvação fora da cultura da corporação: a concorrência é sempre decadente e preguiçosa, mas nós vamos revolucionar o mercado.

Quantas vezes não assistimos a palestras, apresentadas por pretensos líderes, que afirmam a necessidade da “missão” ser cumprida sem questionamentos? Ou que afirmam ser lei a palavra do líder? Você já ouviu a frase “missão dada, missão cumprida”, não é mesmo? Não deveríamos estranhar quando nos dizem que todos no mercado são nossos inimigos e que a concorrência deve ser destruída? Que só existem os extremos do sucesso ou do fracasso? Quando o excesso de trabalho resulta em tristeza, doença e até suicídio, não há algo errado? Por que deveríamos acreditar que a não realização da meta nos transforma automaticamente em fracassados desprezíveis? Uma pergunta muito importante: o seu modelo de gestão carrega consigo o germe do extremismo?

Enfim, se você encontrou semelhanças entre pontos deste texto e seu cotidiano de trabalho, talvez seja a hora de refletir mais detidamente sobre os conceitos de autoritarismo, ditadura e totalitarismo. Mas tome cuidado: o gestor, também conhecido como Grande Irmão, não gosta de questionamentos – só de resultados.


P.S.: Você não se sente mal pois, pensando bem, só cumpre as ordens de seu “líder”? Onde você já ouviu ou leu isso?

Pois é, assustador.


Foto em destaque: Pixabay em Pexels.com.


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