O mundo encantado da publicidade

Não se pode, ao abordar processos econômicos sob uma perspectiva crítica, deslizar para devaneios quixotescos. Uma análise ingênua das relações sociais não parece muito produtiva, por melhores que sejam as intenções. E acredito que esse é um dos raríssimos pontos em que Mises e Marx concordam. Não obstante, recentemente tive a oportunidade de rever o documentário Comercial (Alex Miranda, 2010) e, ao assisti-lo, senti certo comichão analítico.

Creio que se trata de uma das maiores obviedades da Via Láctea criticar o trabalho dos publicitários. De “vendedores de mentiras” em diante, creio que tudo quanto pode ser dito em matéria de repreensão já foi colocado no papel. Ao assistir tantos rostos arrogantes, desfilando egos do tamanho de paquidermes, a tarefa fica até fácil. Platitudes sobre a importância do produto e o impacto da mensagem passeiam pelas cordas vocais de Olivettos de todos os tipos – do original às várias cópias. Não se produz muito conteúdo ou reflexão, nenhuma linha de sociologia e inexistem comentários sobre o impacto social da profissão. A acreditar no que dizem, trata-se de produzir um conjunto de imagens que são coladas ao sabor de instintos e somas astronômicas de verbas de representação. Tudo para que as pessoas consumam: cervejas, doces, cigarros, o que for.

Embora seja vasto o desprezo pelo trabalho com publicidade, há quem habite o outro extremo. Os adoradores desse ramo da economia, que compram o discurso da genialidade envolvida na manipulação de desejos e expectativas. Para essas pessoas, os deuses não eram astronautas: eram publicitários. Da camisa do Fernandinho à Lei de Gérson, estaríamos, para esse fã-clube, diante de exímios esgrimistas do discurso, criadores de textos e vontades.

Também chama a atenção o fato da publicidade estar em perfeita conexão com o dinamismo do capitalismo. As mudanças, necessidades e urgências surgem a todo instante e cabe aos “criativos” captar tais vibrações das linhas de força da economia. De modo que se trabalha em manhãs, tardes e noites, trabalha-se a todo instante, sem folga, em jornadas intermináveis marcadas pela má alimentação, sono escasso, açudes de café e, para os tradicionalistas, centenas de cigarros. Se há um espaço em que a doutrina da meritocracia e empreendedorismo prosperou antes mesmo de existir como tal, esse espaço é o das agências de publicidade. O trabalho deve ser duro, o prazo cumprido, a reclamação engolida, o estagiário punido e a relação profissional instável (alguém viu a CLT?). Caso tenha dificuldades em entender a dialética na prática, pense nisso: a publicidade é, a um só tempo, causa e consequência do capitalismo, com todas as suas contradições.

Esta análise, todavia, não propõe grandes soluções. Como consumidor de alguns dos piores produtos que podemos encontrar no mercado – minhas artérias o demonstram -, nunca deixei de criticar os profissionais da área. E, sendo antropólogo com longos anos em bibliotecas, não tenho muitos pudores ao execrar sua superficialidade. Por outro lado, paradoxalmente, me fascina o poder de síntese e a capacidade de tocar questões um tanto íntimas, que disparam o desejo de consumir – nem sei quantas vezes chorei ao assistir peças como esta.

Mas, terminando, o que gostaria de pontuar, apenas, é que chama a atenção que em meio a a esse suposto mar de “criatividade” exista um elemento tão absolutamente óbvio de mesmice. Tudo é bom, tudo é ótimo, todos os produtos são incríveis, todos estão alegres, todos precisam querer algo, sempre. Eu acredito, em sentido contrário, que, em doses não muito exageradas, a verdade vende. Deveria haver algum esforço para conexão com a tristeza, a chateação e as pessoas que carregam tais sentimentos. Nem todos ficam bem, todos os dias. E seria interessante alguém que dissesse sobre como o mundo pode ser injusto ou cruel, para que o consumidor que não conseguiu ficar feliz no carnaval não se sentisse tão mal a esse respeito. Seria bacana que se dessem ao trabalho de comentar sobre como o mundo caminha, de verdade. Ainda que isso seja triste.

Vejam só… Acho que eu, que comecei criticando a análise romântica da realidade, caí em minha própria armadilha. Mas um dia ainda inventarão o tal Emplasto Brás Cubas e, tenho certeza, encontrarão o publicitário certo para sua divulgação.


Foto: morgueFile.com – lcpuga


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