A pandemia que já começamos a esquecer

O texto a seguir foi redigido no dia 30 de julho de 2021.


De acordo com o painel do Google dedicado às estatísticas sobre COVID-19, até o dia 30 de julho de 2021 o mundo contava com 4,2 milhões de mortos por essa doença. No Brasil, o número de óbitos na mesma data era de 553 mil. Para ajudar quem tem dificuldade com as porcentagens, trata-se de dizer que aproximadamente 13% de todas as vítimas tinham nacionalidade brasileira.

Creio que os números acima deveriam ser suficientes para o completo escândalo de uma sociedade. Contudo, se o problema é falta de estímulo para explosão política, nessa mesma data estava em curso a Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a verificar o comportamento do governo federal na condução da crise sanitária. Das descobertas que chamam a atenção, vale destacar o consistente esforço de boicote à aquisição de vacinas. Tanto pela recusa ao diálogo com a farmacêutica Pfizer, quanto por tratativas mal explicadas para aquisição da famigerada Covaxin, do laboratório Bharat Biontech.

Além disso, é preciso ressaltar o que espanta até os peixes do fundo do mar: a promoção de terapêuticas absolutamente ineficazes contra COVID-19. Enquanto recusava vacinas, o governo federal promovia o “tratamento precoce” com o “kit COVID”: um coquetel com ivermectina, cloroquina, hidroxicloroquina, vitamina C e zinco. Nenhum desses medicamentos e/ou suplementos têm eficácia comprovada para tratamento da doença – o que não impediu que o próprio presidente fizesse propaganda dos mesmos.

De fato, não houve convulsão pública. O tecido social não foi rasgado por essa política de morte e nem pela alarmante deterioração das condições econômicas do país. Ao que parece, tudo devidamente normalizado. O futebol, a cervejinha, o trabalho e a cultura política putrefata caminham em paz, sem grandes sobressaltos.

Nesse contexto de notável apatia, a pandemia ainda não acabou, mas já começamos a esquecer. Não só dos mortos – o que é particularmente aterrador -, mas de nosso comportamento antes e durante a crise. E já é possível ouvir, ao longe, um rumor de sotaque germânico, onipresente quando se pretende evitar responsabilidades. Mal traduzindo, algo como: eu não tenho culpa de nada, apenas acreditei nele. Não era o nosso líder? Não tinha sido eleito? Imagina, eu nunca teria feito nada de errado se ele não tivesse mandado. Na verdade, eu sempre adorei vacinas e nunca idolatrei político. Nem votei nele. Fascista era o meu vizinho, aquele lá…

Mas ainda há três outros esquecimentos que merecem nossa atenção. Vamos a eles.

1. O egoísmo negacionista

No início do século XXI, algo entre o delírio místico e a completa ignorância científica provocou algumas boas risadas mundo afora. Inspirados em criativas teorias da conspiração, multiplicaram-se os defensores do terraplanismo. Contrariando a consolidada conclusão científica de que a Terra tem formato esférico, pessoas começaram a se reunir em fóruns, organizações e grupos de estudo para pesquisar e difundir a tese de que o nosso planeta seria plano. O alcance dessa asneira pode ser visto no documentário Behind the Curve (no Brasil, A Terra É Plana), de 2018.  Fosse apenas uma versão mais radical da recusa em acreditar que a humanidade foi à Lua, tudo acabaria bem. Mas não é exatamente isso.

O terraplanismo é uma demonstração caricata de um amplo e complexo movimento de negacionismo científico. O método e a experimentação deram lugar às correntes da internet e pseudociências que garantem resolver quaisquer males, reais ou imaginários. Entram em cena o coach quântico, as sequências numéricas mágicas, mapas astrais, cura por cristais etc. Aliás, o uso do termo “quântico” parece conferir dignidade a qualquer charlatanismo, em uma mistura de reverência e total incompreensão quanto ao que seria a Física Quântica.

Diante dessa multiplicação de abordagens esotéricas da realidade, a reflexão filosófica consistente e a abordagem científica perdem espaço. Por que recorrer a processos terapêuticos incômodos se é possível repetir números aleatórios até que uma cura milagrosa se materialize? Ou por que não conversar – sim, conversar! – com vírus e bactérias para pedir que eles se comportem e não façam um grande estrago em nosso organismo? Por mais absurdo que tudo isso possa soar, essas são as crenças e o caldo de cultura que permitirão a recusa às vacinas ou a sabotagem ao isolamento social.

O recurso às soluções sobrenaturais e individualistas é a radicalização máxima da recusa aos projetos coletivos. Vale lembrar, a razão e a ciência são uma produção coletiva: trata-se da linguagem e do método que as sociedades adotaram, sobretudo do Renascimento (séculos XIV-XVI) em diante, para substituição do obscurantismo mágico-religioso. Numa grande regressão cognitiva e epistemológica, hoje se divulga que a máscara, o imunizante, o protocolo profilático, enfim, tudo faria parte de uma grande conspiração globalista para domínio de corpos e mentes. Como é possível notar, o que começou com a piada terraplanista chegou a uma delirante revolta pós-moderna da vacina.

2. As reflexões não realizadas

Neste ponto, estamos a esquecer aquilo que nem chegamos a lembrar. Das muitas práticas irresponsáveis durante a pandemia, a recusa ao isolamento social foi uma das mais presentes. A proposta é relativamente simples: sendo um vírus que se propaga pelo ar e tem especial poder de contagio em ambientes fechados e aglomerações, fique em casa. Não vá a bares e restaurantes; trabalhe remotamente; evite o transporte público em horários de pico; não faça festas ou grandes eventos; e, sendo inevitável se expor ao risco, utilize máscara e álcool gel.

Antes de prosseguir, duas observações. Primeiro, é inegável que trabalhadores de setores essenciais e profissionais autônomos não podem seguir tais condutas de forma ideal. Segundo, o isolamento social é desgastante. Não se pode negar que semanas de reclusão forçada resultam em impactos consideráveis à saúde física e mental.

Isso posto, é de se esperar que todos e todas que recusaram esse exercício de autodisciplina acertem contas com a própria consciência. O batizado do primo de segundo grau era mesmo tão importante? A reunião clandestina com 80 pessoas, todas sem máscara, tinha tanta urgência? A autoindulgência justifica o boicote à mobilização pública contra a pandemia? Resta a desconfiança sobre a apropriação cínica do discurso das liberdades individuais: mais que uma defesa de ideais iluministas, a ideia era encher a cara com o pessoal da rua.

Outra reflexão sequer evocada e, portanto, não realizada, diz respeito aos encarcerados. Alteridade e empatia, vocábulos esquecidos neste momento de mesquinharia social, dificilmente se aplicam a quem reside em penitenciárias. Em meio às agruras pandêmicas, cabe uma ponderação sobre as provações da população carcerária.

Pensemos em um irresponsável característico: o indivíduo que ignora o risco de contágio e transmissão, ao frequentar a festa secreta, por não conseguir lidar com os rigores do isolamento. Vale repetir: não se trata de quem tem compromissos profissionais a cumprir, mas dos sabotadores. A pessoa, em sua casa, com acesso a internet, livros, sofá, cama, entrega de comida, conforto e familiaridade, não consegue respeitar o isolamento. O tédio e a irritabilidade seriam as justificativas para um pretenso exercício da “liberdade”.

O mesmo protagonista do parágrafo anterior irá, em algum momento, atacar o encarcerado. Pois este passaria férias na prisão – inevitavelmente aglomerada, mal equipada e desconfortável. Isso mesmo: a pessoa que não consegue ficar uma semana em isolamento domiciliar acha que se trata de passeio no parque uma pena de anos em prisões que lembram o inferno de Dante. A questão não é discutir se o assassino merece a pena. Trata-se, antes, de perceber que nem o homeopático sofrimento do cidadão de bem é capaz de promover alguma reflexão humanitária sobre aqueles que se encontram em situação de maior tormento. Em síntese, esse é apenas mais um exemplo de nosso fracasso ético, como sociedade.

3. A escalada autoritária

Como chegamos até aqui? Também já iniciamos o esquecimento sobre as condições que propiciaram o atual desastre sanitário. Para entender algumas das causas desse morticínio viral, é preciso retornar às eleições de 2018. Um fenômeno como esse se torna possível quando se considera aceitável a substituição de valores laicos e democráticos por uma retórica religiosa obscurantista. Quando o ataque à dignidade humana é considerado banal, pelo elogio à prática da tortura. Também se abre espaço para tal situação com o achincalhe das instituições democráticas e o apelo às soluções golpistas. E ainda merece menção o sequestro dos campos do liberalismo e conservadorismo por reacionários de contornos hidrófobos. Em suma, quando você substitui a análise razoável da realidade pelos delírios de astrólogos disfarçados de filósofos, você pode contribuir para tal estado de coisas.

A catástrofe alemã em 1945 foi um projeto simultaneamente coletivo e individual. Difícil imaginar, aliás, algo mais simplista que transferir toda responsabilidade ética da destruição de uma nação a um suicida de bigode ridículo. Os bons livros de história, todavia, mantêm o registro da conduta da “respeitável” população alemã que abraçou o nazismo: a paulada na cabeça do transeunte judeu era um lazer aceitável. Hoje, quando o sistema de ensino desse país faz um enorme esforço para explicar a responsabilidade histórica da nação, temos a construção de uma consciência coletiva que deriva da educação de cada indivíduo. Mais uma vez, essa vergonha nacional foi, simultaneamente, construção coletiva e individual.

Recorro a essa alegoria para lembrar aos que já começaram a esquecer: o voto no atual presidente não foi acidente e nem se poderá dizer, futuramente, que ele mentiu. Ninguém ignorava, à data da eleição, o ataque à democracia e aos direitos humanos. É de conhecimento público o elogio a figuras execráveis da ditadura, o discurso homofóbico e a confusão entre o espaço público laico e a promoção do fundamentalismo religioso. A responsabilidade se impõe: você, eleitor desse projeto, tem sua parte nesse desastre. O coletivo reacionário que comanda nosso país lá chegou pela maioria das vontades individuais – inclusive a sua.

Lembre-se disso.


Foto em destaque: Burst via Pexels.com.

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