Entre outras definições, administrar é o exercício de lidar com consequências. Lembro de uma aula da disciplina de “Filosofia e Ética” que ministrei a uma turma do curso de Gestão de Recursos Humanos em que debatemos o dilema do bonde. A depender da fonte, o nome e a descrição podem variar, mas, em linhas gerais, a cena é a seguinte:
- Um bonde chega a uma bifurcação e, se tomar o caminho da direita, irá matar cinco pessoas amarradas aos trilhos. Caso vá pela esquerda, vai matar apenas uma. Você, que assiste à cena de uma cabine de controle, pode escolher apertar um botão que garanta que ele vá pela esquerda e atropele a pessoa solitária, salvando a vida das demais;
- A companhia de bondes, muito descuidada, não percebe que, já no dia seguinte, outras cinco pessoas estão amarradas aos trilhos. Desta vez, ao invés da bifurcação, temos uma linha reta. Você está passando por perto e vê uma pessoa assistindo à cena. Ela é enorme, grande o suficiente para que, se empurrada e atropelada, pare o bonde. Você pode novamente salvar cinco pessoas, a diferença é que dessa vez não poderá fazê-lo à distância e terá de sujar as mãos.
Esse pequeno conto, aparentemente simples, traz uma infinidade de contemplações éticas. Aliás, Ética é a ciência da moral e das discussões sobre moralidade. A ética investiga valores, normas e comportamentos aceitáveis moralmente, em diferentes contextos e momentos históricos. Desse modo, se o docente responsável por suas aulas de Ética passou um semestre a repetir que “não se deve roubar a caneta da firma”, pode pedir o dinheiro da mensalidade de volta. Essa área da Filosofia é um pouco mais complexa que a onipresente esferográfica Bic. Mas, questões patrimoniais à parte, voltemos ao estudo de caso. Aparentemente, essa anedota oferece um repertório finito de soluções. No primeiro cenário, podemos matar um para salvar cinco, à distância. No segundo, a conta é a mesma, mas com o complicador da proximidade: para salvar os cinco, você vai depender de sua disposição para matar, pessoalmente.
Tal debate, com boa orientação, pode levar a interpretações que extrapolam as obviedades imediatas. Para começar, você pode rejeitar todo o exercício. Como não trabalha com bondes e toda a situação parece descabida, talvez você nem deva perder tempo com uma análise que escapa tão flagrantemente ao razoável. Também é possível considerar que a questão de fundo é perniciosa. Afinal, o que se propõe é um cálculo sobre custo-benefício: vamos matar um e salvar cinco. Quando lidamos com vidas humanas, porém, essa conta é válida? Tivesse a empresa de bondes trabalhado com o princípio de precaução e considerado todas as variáveis para um evento catastrófico dessa natureza, sequer estaríamos fazendo tal contabilidade. Em uma linha segura, com uma comunicação mais eficiente com o bonde e os devidos mecanismos de salvaguarda, ninguém seria amarrado aos trilhos. E, caso tal absurdo ocorresse, o veículo poderia ser freado a tempo, sem ferir qualquer pessoa.
Entretanto, supondo ser uma situação inescapável – o Coringa fugiu do hospício, amarrou um monte de gente no caminho do bonde e o Batman não vai chegar a tempo -, o que devemos fazer? Novamente, soa mais razoável matar um ao invés de cinco. Aqui estamos administrando escolhas e consequências, de modo a mitigar males inevitáveis. Nessa variante, algo desagradável ocorrerá, inexoravelmente. Apertar o botão à distância parece algo fácil. E empurrar o sujeito na linha do trem, você consegue. Quando fiz essa discussão em sala, a turma foi quase unânime: nesse caso, vão morrer cinco, porque não tenho coragem de matar alguém pessoalmente.
Essa cena-equação mobiliza um agente social que tenta tomar uma decisão racional em um sistema que é falho. Entre a racionalidade e a disposição psicológica para uma definição, em um contexto que faz pouco sentido – beirando o inverossímil -, reside o desafio da análise/escolha. Para nosso socorro reflexivo, podemos questionar:
- Caso Adolf Eichmann tivesse de matar judeus pessoalmente, ao invés de elaborar listas de deportação, teria tirado alguma vida? Em seu julgamento em Jerusalém, sempre negou ter tomado qualquer atitude agressiva contra um único judeu e que apenas cumpriu com seus deveres burocráticos. Num modelo em que o propósito é o assassinato de inocentes, parece que ele ficou a apertar botões à distância, banalizando o mal;
- Quantas vezes já não ouvimos um administrador dizer algo como: foi necessário demitir 20 mil ou toda a empresa iria à falência. Lamento ter tomado tal atitude, mas alguém precisava fazê-lo. Essa situação aparece em diversas conjunturas, com a pessoa a dizer, de variadas formas, que era uma decisão difícil, impopular, cruel, mas era necessário ter coragem para tomá-la e ele assim o fez;
- Isso posto, Eichmann teria coragem de matar prisioneiros judeus, pessoalmente? O responsável pela reestruturação corporativa teria coragem de demitir alguém numa conversa direta? Eichmann é um perpetrador? Suas mãos estão sujas de sangue? O administrador é responsável direto pelas milhares de pessoas que desempregou?
- Eles são menos responsáveis? Mais? Cínicos? Hipócritas? Canalhas?
Qualquer que seja a conclusão, colocando de lado o fato de termos um sistema problemático/falho (trilho do bonde, campo de concentração ou empresa em crise), o agente protagonista na situação será cobrado por seu curso de ação. Ele administrou decisões, terá de lidar com consequências.
Acrescentemos mais uma camada de complexidade ao problema, nas entranhas do confronto entre o que é racional ou não. Ou, na linguagem jovem dos games, passemos ao nível hard desse exercício ético.
Imaginemos um cenário em que, com mais tempo, você pode tomar uma decisão cientificamente embasada e filosoficamente refletida. O bonde não está tão rápido e você tem alguns instantes para solicitar a opinião de engenheiros, projetistas de bondes, psicólogos que irão prever possíveis reações do condutor etc. Idealmente, antes dessa tragédia em curso, você poderia inclusive ter consultado todos esses especialistas, possuidores de conhecimento comprovado, para construção de um sistema logístico seguro o suficiente para evitar essa situação estapafúrdia.
Contudo, em um último lance de racionalidade, você decidiu, após pesar prós e contras, que a ciência institucionalizada, o método e todo o conhecimento de séculos não deveriam ser levados em conta. E tal decisão foi inspirada por uma liderança de oratória notável, residente em algum lugar do estrangeiro. Essa sumidade foi convincente o bastante para lhe dizer que Pitágoras é um engodo, bem como Einstein, Maquiavel, Hegel, Marx, Gramsci, Russell, Adorno, Horkheimer, quase toda a filosofia contemporânea e a física que se apoia na teoria da relatividade. Na verdade, você escolheu racionalmente – inspirado por um valor insuflado por uma liderança carismática – acreditar em um discurso irracional. Racionalmente, você escolheu a astrologia, o terraplanismo, e a certeza das vantagens terapêuticas do tabagismo e do ar fresco da Virgínia.
Em resumo, ao ter de considerar as motivações e consequências de seus atos, para tomar uma decisão em uma situação objetiva, você decidiu abandonar a realidade e abraçar a fabulação. Pode parecer engraçado, mas é como podemos traduzir em palavras: entre apertar o botão ou empurrar alguém na linha do trem ou não fazer nada, você virou as costas e foi ler uma versão rebuscada do Almanaque do Biotônico Fontoura escrita por alguém que parece ter tomado LSD.
E depois das pessoas efetivamente atropeladas, pelo bonde e a matemática de Pitágoras, você olha para os cadáveres. Nesse momento, replicando seu guru, reafirma o que ele considera óbvio: decididamente, tudo não passa de uma conspiração globalista da grande mídia esquerdista. Tínhamos uma situação, elementos para uma decisão informada (boa ou má) e lhe ocorreu a escolha racional de lidar com o desafio de forma irracional. Trata-se de situação tão kafkiana que parece ultrapassar as possibilidades de uma síntese dialética.
Agora, passado o calor do debate, é chegado o momento das considerações éticas, sobre a moralidade das atitudes tomadas. Você vai ter de lidar com as consequências de suas decisões. Isto é, enfim, um exemplo de exercício ético – ainda que marcado pelo uso de um protagonista crédulo (ou cínico) e uma liderança carismática (doida ou inescrupulosa).
Alegra-me saber que isto é mero treino de conceitos filosóficos elementares, em uma ficção. Fosse verdade, tendo escolhido seguir as estranhas orientações de um guia tão caricato, talvez você devesse se considerar responsável direto pelas pessoas atropeladas pelo bonde – uma ou cinco. Do mesmo modo que Eichmann foi concretamente responsável por incontáveis mortes de inocentes e o administrador tenha desgraçado a vida de milhares de famílias.
Antes de terminar, uma última pergunta: hipoteticamente, se a linha do bonde fosse a 2020/21 – Vila Cloroquina – Richmond, você apertaria o botão, empurraria o sujeito nos trilhos ou só deixaria todos morrerem sufocados?
Foto em destaque: Josh Hild no Pexels.
Adquira e colabore para manutenção do Portal Sociologia da Gestão:
Fantástico!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Prezada Rubia,
Muito obrigado pela leitura e elogio. Leu o artigo de hoje, “Uma carta aos arautos da ignorância”? Digamos que é uma versão um pouco mais radical d’O bonde da ética; acho que vai gostar. E os estudos e trabalho, como estão? Por onde anda? Mande notícias!
Um grande abraço e fique bem!
CurtirCurtir