Entre os inúmeros desafios em lecionar sociologia para futuros administradores, há um particularmente difícil de superar: convencer alunos e alunas sobre a importância da disciplina para sua futura atividade profissional. Embora o aperto seja maior quando se trata de sociologia geral, com a tríade Durkheim-Marx-Weber, também é difícil convencer alunos e alunas sobre a importância da sociologia das organizações – mesmo que esta faça parte do núcleo de formação da administração. Afinal, por que adquirir tais conteúdos?
Pensemos em uma cena bastante comum nos grandes centros urbanos. Uma pessoa, com sua motocicleta (ou bicicleta) e uma caixa de entregas, vai a um estabelecimento comercial e retira um pacote que deverá ser transportado até uma residência. Algo visto com frequência em restaurantes, mas que também pode ocorrer em lojas de roupas, com correspondências e embrulhos de todo tipo. Em princípio, nenhuma grande novidade. Afinal, muitos negócios possuem seus entregadores e também existem empresas que agregam motoboys. Mas, notando bem, tem acontecido uma mudança importante na cena descrita acima: a intermediação entre quem vende, quem compra e quem entrega é, cada vez mais, realizada por aplicativos de smartphones. Trata-se da mesma lógica do Uber e demais serviços de transporte de pessoas:
- Um indivíduo tem um carro e deseja transportar pessoas [ou um indivíduo tem um restaurante e quer entregar marmitas a domicílio];
- Existem interessados em contratar serviços de táxi, só que mais baratos [existem interessados em receber o almoço em casa];
- Como unir essas duas pontas? Por uma associação de taxistas? Pelo telefone de um ponto de táxis que pode estar vazio? [Como unir essas duas pontas? O restaurante precisa ter uma equipe de entregadores?]
- Em ambos os casos, a resposta correta é: por um aplicativo de celular.
Quais as questões de fundo ignoradas enquanto ficamos assombrados com tamanha praticidade? Considerando que muitos podem se cadastrar para prestação desse tipo de serviço e que a regulação é praticamente inexistente, não há, de partida, uma forma eficiente de fiscalização desse mercado. O que pode produzir: (1) excesso de oferta, (2) queda nos valores pagos aos prestadores de serviços e (3) padrões irrisórios de remuneração. Nesse processo, todo tipo de regulamentação desaparece: vínculo empregatício; a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); exigências legais para o exercício da profissão; controle da saúde e segurança do trabalhador; etc. Desaparece a burocracia que poderia ser considerada desnecessária e, junto com ela, some todo o aparato de defesa do trabalhador.
Para ocupar o lugar do aparato regulatório, temos o discurso da meritocracia e do empreendedorismo. Em outras palavras, o aplicativo substitui o sindicato, as agências governamentais de fiscalização, as leis e mesmo as empresas tradicionais, que operam com trabalhadores contratados formalmente. As relações formais, dominantes até o fim dos anos 1990, são paulatinamente trocadas por outras, extremamente precárias, que duram apenas um chamado do aplicativo. Ganha força a ideia de que “quem quer corre atrás!” Assim, quem acorda bem cedo, trabalha 16 horas diárias e tem espírito de dono sempre vai se tornar proprietário de uma grande empresa, não é mesmo? Mas… E se o sujeito foi atropelado enquanto fazia uma entrega? Ficou gripado? Não pagou a renovação do documento e apreenderam a moto? Opa, furou o pneu? Nesse caso, ele pode pedir ajuda à empresa que criou o aplicativo – e que fica localizada sabe Deus onde. Ou pode pedir uma força ao vendedor do produto que iria entregar – que vai dizer que não tem nada com isso. Enquanto estiver na fila do SUS ou na oficina tentando entender o que aconteceu, esse desafortunado pode ler sobre casos semelhantes na internet – usando um aplicativo de celular, veja só.
Como uma situação como essa está a se tornar regra no mercado? Parece que estamos prestes a entender a utilidade da sociologia para o administrador. Primeiro, como diria aquele velho barbudo execrado, o Karl Marx, ideologia é isso: um discurso que, a pretexto de explicar de forma objetiva a realidade, a torna confusa e difícil de compreender – principalmente quanto aos seus elementos que envolvem exploração e desigualdades sociais. Trata-se de algo particularmente complicado, aliás: dizer que há, de fato, uma realidade, quando, na verdade, utilizamos este termo para falar de todo o amplo e complexo conjunto de relações sociais presente no mundo. Diante dessa vastidão, como escapar às análises ideológicas e, portanto, parciais da tal “realidade”? Trata-se de uma impossibilidade prática.
Voltando aos entregadores e aplicativos, nada mais ideológico que falar de empreendedorismo e meritocracia na atual dinâmica do mercado de trabalho. O fracasso seria de exclusiva responsabilidade do fracassado, que não pensou grande, não se esforçou e, portanto, não teve mérito e nem conseguiu criar o próprio negócio. No entanto, tal explicação corresponde a uma pequena parcela da realidade, sendo todo o resto aquilo que a ideologia esconde: mercados cada vez mais dinâmicos e competitivos, com regras em constante mutação; crescimento do desemprego estrutural; desmonte da legislação de proteção ao trabalhador; aumento da terceirização; e, por fim, a intermediação entre empregador e mão de obra que é feita por aplicativos, precarizando ao extremo as relações trabalhistas.
E aí chegamos ao ponto final do texto. A sociologia no ensino de administração serve para muitas coisas. Primeiro, para que o aluno entenda que o capitalismo industrial, em moldes fordistas, com uma grande classe média operária, acabou. Segundo, também chegou ao fim o toyotismo do trabalhador mais empoderado, participativo e, também, mais explorado. E, terceiro, hoje temos a acumulação flexível de capital, com empresas organizadas em redes, que buscam resolver tudo via aplicativos e terceirizar o que sobrar. Sem grandes escritórios, sem grandes departamentos, sem empregados e sem carteiras assinadas. Empresas enxutas, exigentes, acumuladoras, capazes de formar bilhões e dividir só um pouquinho com alguns funcionários eleitos via stock options. Funcionários que passarão o resto da vida falando sobre a bondade dessas corporações e retroalimentando o discurso (ideológico) do empreendedorismo e da meritocracia.
Enfim, a sociologia é importante para a administração por conta de sua capacidade de expor criticamente todos esses processos. E eu ensino isso aos meus alunos, para que não ocupem o lugar do entregador e sim o do proprietário do aplicativo. Ao menos é isso que lhes digo. O que me faz pensar que também ensino ideologia – e não estou me referindo ao conceito do Marx.
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