Como ler um texto acadêmico

Série Vamos estudar?, número 1 – Como ler um texto acadêmico

Umberto Eco
Umberto Eco (1932-2016) em 1984.

A produção deste texto jamais seria possível sem a prévia leitura, fichamento, resumo, citação e marcante utilização de uma obra de primeira grandeza quanto ao ofício do pesquisador:

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo, Editora Perspectiva, 1989 [1977].


Ainda que possa soar como obviedade, convém reforçar de início: não há um manual definitivo sobre a forma correta de leitura de um texto acadêmico. Desse modo, se você se dispôs a ler uma obra e a compreendeu e/ou conseguiu integrá-la ao seu trabalho, parabéns!, você realizou uma leitura produtiva. Esse exercício, todavia, que pode parecer banal, ainda assusta muitas pessoas. Entre a falta de incentivo em casa ou na escola e as bibliografias que desprezam o gosto dos alunos, as explicações para esse fenômeno são variadas – trata-se de problema estrutural, na verdade. Em geral, as deficiências na relação com livros e artigos são ignoradas e reaparecem a cada novo ciclo de formação, do ensino fundamental à pós-graduação.

Esta publicação pode auxiliar todas as pessoas que possuem dificuldades com a leitura. No entanto, foi pensada especialmente para aquelas que estão iniciando uma trajetória acadêmica e precisam lidar com artigos científicos e textos de maior densidade teórica. Infelizmente, seriam necessárias muitas postagens para cobrir todos os tipos de produção escrita disponíveis em uma biblioteca. A proposta deste artigo, portanto, é oferecer um roteiro básico para realização de leituras acadêmicas, com algumas orientações que julgamos indispensáveis. Vamos a elas.

1. Você tem o texto?

Uma experiência aprendida a duras penas, durante meu período de graduação, diz respeito à posse do texto que pretendemos ler. Dificilmente tomaremos contato com um trabalho e conseguiremos imediata e completa absorção de seu conteúdo. Logo, para melhor apreendermos o que um autor propõe, o manuseio da obra e o retorno sistemático à leitura tornam-se imprescindíveis. Todas as vezes em que li um texto e não o manuseei, grifei, anotei, etc, a retenção de suas ideias fundamentais foi prejudicada. Isso é muito comum quando lidamos com livros de bibliotecas, os quais não devemos rabiscar: material lido, devolvido, nada anotado, tudo esquecido.

De duas, uma: ou você adquire a obra com a qual pretende trabalhar, de algum modo – livraria, sebo, copiadora, etc – ou toma notas de imediato (falaremos a respeito no item sobre fichamentos). O ideal é realizar algum esforço para montagem de uma biblioteca pessoal mínima, com os títulos indispensáveis ao exercício de pesquisa. Nesse sentido, uma combinação entre itens clássicos e outros referentes à nossa área de interesse é a ideal. Caso não seja possível – livro é artigo de luxo no Brasil, reconheço –, o melhor é copiar mesmo, “xerocar”, naquilo que a legislação permite. E se o dinheiro estiver curto para uma coisa ou outra, pegue o livro e comece a tomar notas tão logo inicie a leitura.

2. Qual sua motivação para leitura?

Você quer ler o livro ou artigo à sua frente? Trata-se de exigência de seu curso e/ou de sua pesquisa? A curiosidade é tamanha que você deixou de lado a festa com amigos só para poder ler um monte de páginas, o quanto antes?

Para que essa atividade seja minimamente proveitosa, você precisa estar disposto a dedicar algumas horas de concentração e esforço intelectual. Sem tal disposição, a leitura simplesmente não acontecerá. Mesmo que existam títulos que, em minha opinião, deveriam ser descartados de imediato – tamanha a chatice ou irrelevância –, essa nem sempre é uma opção. Dificilmente uma pessoa irá obter um diploma lendo apenas o que gosta. Nesse caso, você deve ser capaz de criar a motivação necessária ao exercício intelectual. Para isso, leve em conta a importância do conhecimento adquirido; a construção de uma formação sólida; a relevância das informações para seus interesses de pesquisa; e até mesmo a necessidade de uma boa nota em alguma avaliação. Qualquer que seja a justificativa construída, acredite: sem alguma motivação, você não chegará ao final da leitura.

Isso pode parecer demasiado romântico, nos dias atuais, mas sempre achei que o acesso ao conhecimento seria elemento motivador mais que suficiente. De todo modo, para que não precisemos “fabricar” inspiração de forma recorrente, convém dedicar algum tempo para assuntos e autores que nos interessam de forma mais espontânea.

3. Passeando pelo texto

Ótimo, agora que você já possui o texto e já se convenceu de que a leitura é importante, analise o material à sua frente. Trata-se de um artigo científico ou reflexão de maior fôlego? São poucas ou muitas páginas? A estrutura do material é convencional, com introdução, desenvolvimento, conclusão e bibliografia? Possui um resumo inicial ou introdução descritiva, para que você tenha ideia do que se trata? Uma rápida passada de olhos pela obra garante maior familiaridade e facilita algumas decisões operacionais. Afinal, se o texto é longo e parece árduo, teremos de reservar um tempo maior e garantir melhor concentração. Por outro lado, se a obra tem caráter mais superficial e/ou trata de algo que já estudamos, será necessária menor dedicação.

Também é interessante realizar uma primeira leitura, mais veloz, para percepção dos pontos que parecem mais importantes e a identificação daqueles trechos que oferecerão maior dificuldade. Essa “leitura de mapeamento” dá mais segurança ao leitor. E quanto maior a segurança e a certeza de que estamos a compreender o conteúdo de nossa leitura, menores as chances de desistência – nada mais frustrante, convenhamos, que a sensação de que as páginas à nossa frente não fazem o menor sentido.

Esse passeio inicial pelo texto pode parecer pouco útil, mas, na verdade, garante melhor entendimento e uma notável economia de tempo. No cálculo geral, a leitura sem tais preparativos acaba sendo mais lenta e penosa, pois cada palavra é uma novidade completa, na medida em que o texto não foi previamente examinado.

4. Identificando itens essenciais

A consequência imediata do “passeio” pela publicação é a percepção de sua divisão em itens. Normalmente, encontraremos uma introdução, metodologia de pesquisa, capítulos de desenvolvimento, conclusão e bibliografia. Você precisa saber o que cada item significa:

  • Introdução: contém a descrição geral do trabalho, o que o autor pretende abordar, quais os seus objetivos, etc;
  • Metodologia: trata-se da explicação sobre como a pesquisa foi realizada. Quais os autores utilizados? Qual a perspectiva filosófica da análise? A abordagem é qualitativa ou quantitativa? Envolve campo? Estamos diante de um estudo de caso, revisão bibliográfica ou cobertura exaustiva de um campo científico? Entre a introdução e a metodologia, o autor pode citar a tese central e as hipóteses formuladas/utilizadas durante a pesquisa;
  • Desenvolvimento: o problema de pesquisa é “atacado” ao longo desses capítulos. Para isso, são elencados autores, teorias, conceitos e é recuperada a revisão bibliográfica sobre o tema. Supondo se tratar de assunto complexo, cada capítulo de desenvolvimento costuma abordar um item/uma parte do problema de pesquisa;
  • Conclusão: quais os resultados alcançados? Quais os achados da análise? Quais tópicos merecem ser realçados? Tudo isso costuma aparecer na conclusão;
  • Bibliografia: os títulos consultados/lidos para construção da investigação.

Outros capítulos podem aparecer, não há uma regra definitiva sobre isso. Alguns trabalhos podem dedicar algumas páginas à justificativa da pesquisa, por exemplo. De qualquer modo, essa estrutura é a mais comum em dissertações e teses. Em artigos científicos mais curtos, tais itens aparecem de forma resumida.

Um ensaio, por sua vez, permite maior liberdade de reflexão, na medida em que não se prende tanto às restrições metodológicas. Nesse caso, talvez esses itens não estejam presentes e é importante levar em conta que se trata de uma exposição de ideias mais livre, cujas afirmações devem ser utilizadas com ponderação.

Embora o ideal seja a leitura completa de cada obra, isso nem sempre é possível. O recomendável, nessas situações, é a definição daquilo que é essencial aos nossos interesses. Recomendo sempre que se leia, além dos capítulos que tratam dos problemas importantes à nossa apuração, a introdução – para que fiquem evidentes os limites da obra com a qual estamos lidando e, assim, as possibilidades de utilização da mesma – e a bibliografia. Esta última enumera o percurso analítico empreendido pelo autor e também pode servir como guia para leituras futuras.

5. Como grifar/sublinhar e identificação de palavras-chave

Como já dizia Umberto Eco, em Como se faz uma tese (1989, pp.93-95), sublinhar tudo é o mesmo que não sublinhar nada. Fácil dizer e difícil fazer, no entanto: que atire a primeira pedra quem nunca terminou com um texto sublinhado da primeira à última palavra. Mas para evitar tal constrangimento, como proceder? Creio que há duas formas de grifar um texto que são mais práticas e podem ser combinadas.

Primeiro, marcar itens que julgamos importantes: uma ideia central, a tese defendida, as hipóteses formuladas, a citação de um autor relevante, um achado de pesquisa notável, definições de conceitos, etc. E podemos estabelecer uma gradação: itens imprescindíveis marcados com uma estrela; itens que interessam à pesquisa, mas não são urgentes, uma exclamação; e os tópicos para atenção futura, que podem ou não ser úteis, apenas sublinhados. Os símbolos podem ser combinados ao uso de cores variadas ao grifar.

Segundo, a importância de uma ideia só pode ser estabelecida quando determinamos um critério para isso. Vejamos, como exemplo, uma pesquisa em que vamos ler o autor X e queremos perceber nele a influência de outros dois autores, Y e Z. Ao sublinhar o texto de X, podemos escrever, ao lado de cada trecho assinalado, as letras Y ou Z para, desse modo, mapearmos a influência desses dois autores. Ou suponhamos que queiramos achar, em um livro sobre Administração, a influência de autores clássicos: podemos assinalar, ao lado dos trechos grifados, F.T. (uma ideia influenciada por Frederick Taylor) ou H.F. (uma análise originalmente proposta por Henri Fayol).

Em resumo, ao grifar, precisamos levar em consideração, sempre, (1) a importância do que vamos destacar e (2) o que determina essa importância (por que é importante?). E devemos sempre exercitar a economia no exercício de sublinhar, pois ele serve para destacar somente os itens vitais do texto. Grife pouco e somente o essencial.

As palavras-chave são aquelas que resumem os grandes temas e conceitos presentes em um texto. Por maior que seja uma dissertação, ela terá quatro ou cinco palavras capazes de dar conta de sua orientação geral e conceitos fundamentais. Essas são as palavras-chave, que, em muitos casos, aparecem indicadas logo no início de artigos, dissertações e teses. Um bom modo de utilizá-las é identificar sua presença ao longo do texto, pois costumam indicar trechos particularmente importantes. Além disso, a boa prática acadêmica determina que devemos, como ponto de partida, definir com clareza quais são os conceitos utilizados em uma análise. Exemplo: você vai falar sobre relações sociais no mundo virtual? Então o que você define como “relações sociais” e “mundo virtual”? Isso precisa aparecer de forma cristalina e, na medida em que são conceitos essenciais da pesquisa, serão, também, palavras-chave.

6. Fichamentos

Um bom modo de garantir a utilidade de uma leitura e não ser obrigado a repeti-la indefinidamente é a prática do fichamento. Como o nome sugere, trata-se de produzir uma ficha para cada título lido. Quem tem mais de 30 anos deve se lembrar que existiam fichas de papel específicas para tal finalidade, vendidas em papelarias – talvez ainda existam, aliás. O uso generalizado do computador e dos editores de texto, no entanto, tornou dispensável a ficha de papel.

Para fichar um texto, o ideal é abrir um arquivo de texto em seu programa preferido e anotar os seguintes itens:

  • No topo, a referência bibliográfica padrão, com sobrenome e nome do autor; título do trabalho; cidade da edição; nome da editora; e ano de publicação;
  • Em seguida, a data em que a leitura ocorreu e o seu propósito. Exemplo: lido em 02/02/2017 para posterior citação em meu TCC, no referencial metodológico;
  • Depois, um breve resumo, com as ideias centrais do texto e suas impressões a respeito: se é útil, se deveria ser citado, se levou a outras leituras, se merece ser descartado, etc;
  • Por fim, vale reproduzir alguns trechos, caso tenha encontrado elementos importantes à investigação que se está realizando e/ou para empreendimentos futuros. Um banco de citações, para apoio em revisões bibliográficas ou para referências de pesquisa, é sempre uma boa ideia.

Um determinado fichamento até pode ter várias laudas, considerando um texto particularmente significativo. Mas o ideal, já que muitas vezes lidamos com bibliografias extensas, é que ele se atenha aos itens mais essenciais de uma obra e seja curto – uma lauda é suficiente. Por outro lado, caso nos deparemos com um livro ou artigo que seja absolutamente vital para nossa apuração, aí talvez seja o caso de recorrermos ao tradicional resumo escolar, que, geralmente, é bem mais amplo.

7. Regularidade

Finalmente, a construção da competência para leitura requer treino. Um pouco a cada dia, aumentando a dose progressivamente: uma hora de biblioteca, depois duas, três… O mesmo vale para as quantidades de páginas. Inicialmente, pode parecer um suplício dar cabo de dez páginas, mas a regularidade nessa prática habitua o corpo e a mente a manterem a concentração, por tempos cada vez maiores. Portanto, para que você consiga ler bem, precisa ler sempre, o que requer alguma disciplina e disposição. A leitura bissexta, aquela em que lidamos com um livro a cada quatro anos, não é capaz de criar as estruturas cognitivas necessárias à repetição sistemática desse exercício.


Foto de Umberto Eco: Rob Bogaerts/Anefo, Nationaal Archief, Países Baixos; CC0 1.0.

Foto em destaque no topo do texto: usuário a8n8g8e8l em Morguefile.com.


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