Dialética do obscurantismo

Dialética do obscurantismo

As eleições gerais de 2022 no Brasil são um bom exemplo do quanto uma sociedade pode retroceder no que diz respeito aos valores humanistas e apreço à democracia. Chama a atenção que, depois de quase 700 mil mortos, os efeitos da pandemia de COVID-19 não sejam o tema principal dos debates eleitorais. Ao avaliar a lista de eleitos para o legislativo, inclusive, não se pode ignorar a mistura de criatividade e sadismo de nosso eleitor: desmatadores, generais ineptos, pastores que desconhecem os ensinamentos de Cristo, defensores da tortura em geral, milicianos, armamentistas tacanhos etc. Escolha a bizarria de sua predileção e encontrará alguém que o represente na próxima legislatura. Quanto à qualidade do material político, portanto, mais que corrosão, observamos acelerada putrefação.

Tais resultados eleitorais são causa e efeito de um notável empobrecimento de nosso debate público. O pensamento conservador, que possui sua dignidade e relevância teórica, foi sequestrado. Entre a Virgínia (EUA) e o Paraná, discípulos de um autoproclamado filósofo conservador assumiram a franquia do mestre após seu falecimento. De obra pífia, comportamento histriônico e oligofrênico, esse senhor deixa como maior legado uma legião de influenciadores digitais especializados em destilar ignorâncias analíticas e intolerâncias variadas. A ignomínia não conhece limites para quem considera que Karl Marx era pai de Belzebu; Theodor Adorno, o responsável pelas composições dos Beatles; e que Isaac Newton e Albert Einstein eram fraudes da Física. A ausência de decoro intelectual fica evidente no negacionismo antivacina e no flerte com o terraplanismo. Outra abdução do pensamento conservador ocorre em sua deliberada confusão com o reacionarismo mais tacanho. Das odes ao homem cristão medieval ao desejo freudiano do consumo de armas, nota-se uma primitiva combinação: desejo de violência, misoginia e apelo a um suposto pensamento cristão que soaria regressivo até nas páginas do Gênesis. Aliás, ao ver um documentário sobre o que seria a “beleza”, produzido por uma dessas trupes de medievalistas digitais, fiquei na dúvida se estava diante de uma noção de arte digna de minha vó Genoveva ou se não seria apenas uma versão atualizada de fatos retratados no clássico Arquitetura da Destruição (Peter Cohen, Suécia, 1989).

Muito embora seja radicalmente contrário às falsas simetrias, creio ser relevante refletir sobre como essa guinada à hidrofobia, por parte do campo político de direita, teve seus reflexos no pensamento progressista. Daquilo que podemos assistir em nosso país, há figuras aparentemente muito arejadas e inovadoras que propõem a reabilitação histórica de Josef Stalin. Em outras palavras, considera-se razoável perceber pontos positivos em um maníaco que ordenou a morte de toda a velha guarda bolchevique, enterrou o legado de Lênin, mandou aos cemitérios ou aos gulags o melhor do Exército Vermelho e eliminou qualquer possibilidade democrática no horizonte da União Soviética. Das importações que temos realizado, o feminismo radical branco vindo do hemisfério norte tem feito seus estragos. Pouco a pouco, dissemina a ideia psicótica de que mulheres trans são homens de saia infiltrados nas fileiras feministas para promoção do patriarcado e a prática de violências em série contra as “verdadeiras mulheres”. Qualquer outra versão desse movimento, que não defina a mulher exclusivamente pelo sexo e que recuse tratar o feminino como classe social, é visto com desprezo. Interseccional, liberal, marxista, negro… O mais importante, parece, é elaborar uma mescla confusa de transfobia, essencialismo biológico e luta contra exploração do corpo feminino. Esse último ponto, aliás, em muito lembra a explicação dos aiatolás para o uso de hijabes, nicabes e burcas: véus que representariam a libertação das mulheres contra os olhares de desejo masculinos. Entre a pudicícia e a franca ignorância, essas valentes guerreiras estão a criar um novíssimo feminismo damarista.

A presente eleição federal brasileira mostra de forma clara o que está em jogo. Existe uma visão obtusa, inclusive na Sociologia, que tudo resume a uma oposição chapada entre esquerda e direita. Tratar-se-ia de uma confrontação entre o consórcio neoliberal-reacionário e o binômio socialismo-progressismo, cada um desses campos com suas contradições internas. Mas não é exatamente isso que está posto. A pauta reacionária quanto à fiscalização de comportamentos, mais o avanço neoliberal e a criação de uma economia hobbesiana, passaram a pautar o debate público com inquestionável dominância. Diante disso, vivemos um radical rebaixamento de programas e discursos. Não se trata mais de discutir o que virá após o capitalismo, mas de defender elementos mais essenciais da vida republicana. A disputa envolve valores consolidados desde a Revolução Francesa (1789) e o Iluminismo: o respeito às liberdades individuais; a promoção de ideais democráticos e de participação popular; a defesa do progresso técnico-científico; o estabelecimento de um sistema abrangente de educação pública; a constituição de um Estado laico; e a busca por uma sociedade mais igualitária.

O bolsonarismo, como projeto político-ideológico, representa um grande retrocesso em relação ao programa iluminista – que, aliás, nunca foi particularmente benquisto nas terras de Pindorama. Mais que isso, significa uma ruptura importante quanto ao que há de mais humanista no contrato social. A guerra de todos contra todos se mostra atualizada em vários cenários. Nas agressões via internet e redes sociais, tendo em vista que qualquer diálogo pode degenerar muito rapidamente em ofensas de baixíssimo nível e elevada virulência. Na “maromba” como elemento de expressão e argumentação: o consumo de suplementos alimentares substitui a leitura; músculos substituem ideias; e a intimidação física ocupa o lugar da argumentação. Finalmente, na fetichização das armas que, mal disfarçada por um apelo à defesa do “cidadão de bem”, se converte em perigo à segurança coletiva. A pretexto da proteção individual e patrimonial, já se pode participar da briga de trânsito portando uma arma e, nos momentos de bebedeira, ameaçar de morte a família. De forma muito lúdica, a depender de sua cor, classe, histórico político e proximidade do poder, você pode até atirar com seu fuzil de estimação contra a Polícia Federal, como bem demonstrou Roberto Jefferson.

O bolsonarismo é a filial brasileira do trumpismo, da ascensão reacionária no Leste Europeu e da megalomania autocrática de Putin. Um elemento que compartilha mais diretamente com o movimento trumpista, todavia, diz respeito à miséria do debate público, à qual retorno. Em 2022, mesmo após 180 anos de discussões sobre a obra de Karl Marx, continua a ignorância, espontânea ou deliberada, sobre o que seria o tal comunismo. Acreditar que um eventual governo Lula levaria o Brasil a adotar uma bandeira vermelha é evidente demonstração de indigência ou desonestidade intelectual, quiçá da ausência de leituras sociológicas elementares. Não há revolução socialista no horizonte, tampouco estatização forçada de empresas privadas ou mudança para uma estrutura produtiva dirigista e planificada. O espantalho do “marxismo cultural” e a ideia de que se pode alavancar a superação do atual modo de produção pela mudança de certos hábitos sociais nos levam a questões embaraçosas. Os EUA, ao liberarem o consumo recreativo de canábis, estão a um passo de se converterem em um grande soviete? Seriam socialistas todas as nações que dispõem de dispositivos legais voltados à proteção de minorias e ao reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo? Os países europeus que promovem ativamente a regulação da mídia são, todos eles, experimentos totalitários ainda não descobertos? Até mesmo a Alemanha, comandada pela conservadora Angela Merkel entre 2005 e 2021, corre perigo?

Podemos descer ainda mais na descrição desse fenômeno e lembrar do uso que se faz do vernáculo atualmente, sobretudo nas redes. O autoproclamado – e falecido – filósofo criptoterraplanista pontificava bobagens enquanto usava palavreado chulo, típico de discussões em banheiro público, para rebater adversários. Seus herdeiros, de grande popularidade internética, fazem o mesmo. Afirmações sobre a mãe de um debatedor e sobre o uso a ser feito das cavidades corporais de um inimigo são corriqueiras. Fraudar e distorcer dados também é algo muito comum.

Nessa dialética da barbárie, o campo progressista tem procurado reagir com táticas curiosas. No período eleitoral, alguns grupos do tradicionalismo sindical-estudantil apostaram na secular prática das panfletagens, com a distribuição de santinhos em vias públicas de grande circulação. Outros, em uma apropriação não tão contemporânea das redes sociais, investiram nos vídeos com artistas famosos, clipes elaborados, conteúdos de maior densidade estética e afins. Assim, produziram material com arte e elegância, capaz de angariar uns 14 votos, na melhor das hipóteses. Entre o fracasso da distribuição de papeizinhos e a irrelevância caetânica, teve maior sucesso a cópia do modelo bolsolavista. Uma parte relevante da esquerda se engajou na distribuição de fake news, produção de materiais sensacionalistas e apelos ao onipresente pânico moral. Mais importante que lembrar dos quase 700 mil mortos pela COVID-19, é garantir que não haverá banheiros unissex nas escolas – embora existam nas casas da tradicional família brasileira – e reafirmar que Deus é o senhor, a luz, a vida, o guia inconteste, capitão dos exércitos, fonte de toda glória etc.

Um tostão de teoria

A dialética, que é confrontação e síntese entre contrários, neste momento oscila, também dialeticamente, entre o ideal e o material. O obscurantismo mobiliza, entre progressistas e reacionários, o tal pânico moral. Este é ideia/ideologia pura, na medida em que não há notícia da travestilização de todo o planeta, tampouco de que o Novo Testamento teria sido revogado em favor do retorno ao sumo do Levítico. Cidadãos de bem, feministas radicais, neopentecostais, templários armamentistas e stalinistas, todos unidos em santa aliança para execrar as ideias que giram em torno da diversidade e da democracia. Juntos contra a liberdade individual e a qualquer coisa que lembre, ainda que vagamente, o erotismo, a festa e a possibilidade de ser quem se é.

Essa dialética também tem uma dimensão material, já que consegue produzir contradições nas relações de produção que passaram longe da bola de cristal de Marx. Desse modo, a partir da união indissolúvel entre as ideias de empreendedorismo e meritocracia, no mundo das relações materiais os trabalhadores clamam pela extinção de seus próprios direitos, a começar pela legislação trabalhista e os sindicatos. Devemos trabalhar mais, vestir a camisa e reclamar menos, em suma, devemos gerar mais riqueza e exigir que uma parcela menor da mesma nos seja destinada. Em um trava-línguas sociológico, conclui-se que ideias contraditórias têm aprofundado as contradições do mundo real.

Muitos dos elementos citados até aqui têm manifestações mundo afora, das quais somos importadores ativos. Creio ser difícil encontrar para além de nossas fronteiras, no entanto, uma situação de tamanho delírio e empobrecimento do debate público. Talvez me falte amostra etnográfica ampla o suficiente para realizar uma afirmação tão assertiva mas, no Brasil, esculhambação é categoria sociológica. Grupos de mídia que suprimem a liberdade alheia, por conta de sua prodigiosa distribuição de notícias falsas, reclamam ser vítimas de censura. Denominações que perseguem alegam ser vítimas de perseguição. O Executivo e o Legislativo, que mantêm relação promíscua para manutenção de poder político, reclamam de uma suposta ingerência do Judiciário. A mesma elite que mantém miseráveis subjugados, via aparato repressivo do Estado, alega insegurança. A classe média que vive de salário, universidade pública e concurso público milita pelo fim da legislação trabalhista, do sistema público de educação e deseja o Estado mínimo. Por aqui, como se nota, as ideias continuam fora de lugar. Este é o país, enfim, em que um estabelecimento comercial pode ter o nome de “Senzala” e isso ser encarado com a mais cândida naturalidade. Fico a imaginar o que seria de uma mercearia chamada Auschwitz em alguma rua de Berlim…

Finalizo com um pequeno adereço teórico-metodológico. Desconfio que este seria um bom momento para os colegas de fé marxista reavaliarem algumas de suas certezas. Creio não se tratar mais de uma infraestrutura econômica que produz e reproduz uma forma de entendimento e vivência do mundo. Nem de uma superestrutura que, na mesma lógica, é produzida por e reproduz ideologia. Trata-se, antes, de compreender como um conjunto articulado de ideias e símbolos é capaz de criar realidade. Realidade, diga-se, de um tipo bastante peculiar. Em uma frase, estamos a assistir a criação de uma realidade que prescinde do real. O leite é inacessível, a carne vermelha é coisa para rico, o gás de cozinha tem preços tão elevados que famílias pobres são obrigadas a cozinhar com álcool, o aluguel não para de aumentar e o salário perde progressivamente seu poder de compra. Quase 700 mil pessoas morreram em uma pandemia catastrófica, muitas pela falta da vacina que já existia. A carestia, o empobrecimento, a morte, o aumento da exploração, o fim da proteção trabalhista… Tudo isso é objetivamente real e palpável. Só não é mais real que a irrealidade propagada pelo pânico moral. Nada do que foi listado conta, pois, em algum lugar, há uma divindade que não ficará satisfeita enquanto você não consagrar sua vida a ela. Não são as boas obras, não é a fé, não é a prática da caridade: tudo se resume a apoiar a distribuição de armas e a combater a linguagem neutra, pois, para essa grande força mística, em seu trono celestial, isso é o que importa. Dos confins do firmamento celeste, após criar bilhões de galáxias, a ela só interessa com quem você dorme e o tipo de banheiro que usa.


Observações:

Agradeço a leitura atenta e generosa de Catarina Eya Campiello Contipelli

Para o número de óbitos confirmados, por conta da COVID-19, ver o painel do Ministério da Saúde do Brasil, disponível aqui. Acesso em 24 out. 2022.

Imagem em destaque, simbolizando o eclipse da razão: foto de Drew Rae, via Pexels.com, disponível aqui.

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6 comentários em “Dialética do obscurantismo

  1. Um belo texto! Definitivamente é um daqueles que me põe pra refletir profundamente e vem municiado com um sentimento de que estamos falhando como humanidade, infelizmente. Grande abraço, professor!

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  2. Parabéns, Antonio, por conseguir elaborar uma reflexão crítica muito original, direta e com a ironia que lhe é característica! Estou divulgando. Precisamos urgentemente pensar além do convencional.

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