À guisa de prefácio
O texto a seguir foi originalmente publicado em 11 de julho de 2014, em outro espaço da internet. Como o título sugere, trata-se de uma tentativa de experimento literário: uma crônica fantasiosa sobre o processo de ocupação humana do planeta Marte. Durante alguns anos, considerando a curiosidade despertada pelo tema, utilizei esse material em sala de aula, em ótimos debates com alunos e alunas.
Sobre esta reedição, algo raríssimo no portal Sociologia da Gestão, desejo fazer dois apontamentos. Primeiro, a motivação desta reciclagem é bastante prosaica, sendo eu um professor: estou em período de provas e fica difícil escrever algo original e corrigir avaliações, simultaneamente. Segundo, gosto de pensar que, descontada a ligeira arrogância intelectual que é parte do ofício acadêmico, sou um sujeito até bastante humilde. De modo que, por haver previsto uma ou duas coisas corretamente, conforme consignado no texto a seguir, jactar-me-ei. A tal “conquista espacial” se converteu em empreendimento comercial dos mais lastimáveis, com bilionários atracados em disputas fálicas para descobrir quem tem o maior foguete. E pensar que há quem admire e cite como exemplo pedagógico-empreendedor um néscio moral do quilate de Elon Musk.
Encerro, posto que prefácio longo é tão ruim quanto visita demorada.
Uma crônica sobre a colonização de Marte
Gostaria de esclarecer o fato de que este texto é uma memória do futuro. Eu, um historiador do século XXII, ofereço a vocês, habitantes de 2014, uma visão de eventos que deverão ocorrer ao longo dos próximos quase duzentos anos. Assim, os episódios narrados a seguir aconteceram exatamente do modo descrito, descontada a parcialidade de meu olhar, muito embora ainda não tenham ocorrido. Trata-se de um mecanismo semelhante ao apocalipse bíblico – a diferença fundamental é que neste documento você terá o relato verídico de um intelectual do futuro e não o delírio de profetas obscuros a falar de cavaleiros alados.
Pois bem, iniciemos. Daqui vinte anos, em 2034, os Estados Unidos da América, ao lado das Nações Unidas, União Europeia, China, Rússia, Índia, Brasil e um consórcio de grandes empresas, farão um anúncio solene: a assinatura de uma carta de intenções para o envio de seres humanos a Marte. O projeto, bastante ousado, inclui a exploração científica, estabelecimento de uma colônia e, em longo prazo, o povoamento de todo o planeta. Embora cercado de ceticismo – por se tratar, inicialmente, de mera carta de intenções –, o plano frutificou. Foram feitos investimentos em laboratórios, desenhos de novos veículos espaciais, testes de módulos de sobrevivência etc. No entanto, a falta de um cronograma claro sempre colocava a credibilidade do empreendimento em questão. Chegaríamos a Marte ou continuaríamos a gastar recursos de forma aleatória, sem metas definidas? As comparações com a primeira viagem à Lua, cuja data-limite de realização fora dada pelo presidente Kennedy em discurso ao público, eram corriqueiras.
Em 2047, o esforço internacional enfrentou sua primeira grande crise. Vários países e blocos transnacionais, devido a problemas políticos internos, falta de recursos e descrença generalizada de suas populações, abandonaram o programa. Com tais desistências, China e Estados Unidos consolidam sua liderança (embora permaneçam participações relevantes da Rússia e da Índia). Após dois anos de calmaria, surge uma nova crise, em 2049. A construção do ponto de apoio lunar e a extensa ampliação e modernização da base espacial internacional consomem centenas de bilhões de dólares, sacrificando os orçamentos dos países protagonistas da expedição. O dinheiro se torna escasso e todo o projeto passa a correr risco de cancelamento. Uma maciça campanha pública de arrecadação, realizada em todo o mundo, resulta em retumbante fracasso. A venda dos “bônus da colonização de Marte” não comove o planeta.
No ano de 2050, o problema de financiamento é superado de forma surpreendente e definitiva. O gigantesco conglomerado Google-Apple, na maior parceria público-privada da história da humanidade, investe 300 bilhões de dólares no projeto, de uma só vez. Além disso, cede às agências espaciais um grande contingente de técnicos e cientistas e garante acesso irrestrito aos seus mais avançados laboratórios de pesquisa. Em troca, o conglomerado ganha exclusividade em todos os contratos de fornecimento de tecnologia informacional na futura colônia alienígena.
Ao longo da década de 2050, contratos como o do Google-Apple tornaram-se um padrão na iniciativa de colonização. Um consórcio de mineradoras investiu 400 bilhões de dólares em troca da exclusividade sobre as jazidas marcianas. Outros 200 bilhões foram investidos por empresas de energia interessadas na produção de eletricidade no planeta. Em troca de 50 bilhões, a Fox-CNN ganhou o direito de cobertura jornalística exclusiva do processo de colonização até 2158. E uma cadeia de hotéis emprestou 20 bilhões em troca do direito de construção de um resort de luxo em algum ponto do Monte Olimpo. Para legalizar a apropriação de solo extraterreno por entidades privadas, o Tratado do Espaço Exterior foi extensamente emendado. Foram arrecadados, ao longo de uma década, quase dois trilhões de dólares. O comitê de financiadores da iniciativa privada, tendo a eficiência como credo, determinou um rigoroso cronograma de implementação prática do grande projeto. As máquinas deveriam sair do papel e os testes deveriam entrar em sua fase mais aguda. Definitivamente, estávamos a caminho de Marte.
Após uma década de intensos esforços de engenharia, chegamos ao mágico ano de 2072. Na véspera do lançamento da primeira missão tripulada ao planeta vermelho, o secretário-geral da ONU, Ravij Narendra Singh, diz que a colonização marciana é o programa mais bem-sucedido de parceria entre os poderes públicos e a iniciativa privada na história da humanidade. Os maciços investimentos corporativos, além de viabilizarem a execução da missão, criaram toda uma agenda para o desenvolvimento da colônia: cada pedaço do solo marciano já tinha um dono e uma atividade econômica específica. Os grandes conglomerados realizariam além-Terra a utopia da busca do lucro e a criação de uma sociedade orientada para a produção eficiente de tudo quanto pode ser produzido.
Em 2073, a espécie humana pisa em Marte pela primeira vez. A equipe de exploração chega ao planeta após uma viagem de seis meses. O comando da missão, disposto a não repetir o fiasco nacionalista lunar de 1969, estabelece que uma bandeira das Nações Unidas deve ser fincada na vastidão vermelha. As imagens do evento, em altíssima definição, maravilharam onze bilhões de espectadores na Terra. Também chamou a atenção o fato dos uniformes dos astronautas, tal qual pilotos de corrida, estarem cobertos com os logotipos das empresas patrocinadoras do empreendimento.
Nos trinta anos que se seguem à chegada da humanidade, entre 2074 e 2104, o processo de ocupação do planeta se acelera de forma impressionante. Novas missões são enviadas, cada vez com um número maior de passageiros. Em 2094, já temos mais de dois mil humanos em um complexo conjunto de módulos, laboratórios, estufas e projetos-piloto de exploração mineral e produção de energia. Merece distinção especial a década compreendida entre 2095 e 2104. Nesse período, a colonização ganha uma velocidade ainda maior, com grandes avanços na tecnologia de transporte espacial: novos combustíveis, novos veículos, mecanismos inovadores para simulação da gravidade terrestre etc. Na esteira dos eventos de Marte, assistimos a uma era de ouro da exploração do Sistema Solar. Sondas se espalham de Mercúrio a Plutão, uma nave tripulada chega à órbita de Europa e há uma série de rumores sobre contatos com vida alienígena, que teriam ocorrido a partir da centenária Voyager 1. Esses eventos chegam à Terra, em imagens, pelas câmeras e satélites da Fox-CNN.
Nas próximas seis décadas, entre 2105 e 2170, o povoamento de Marte evolui de forma consistente. Em 2118, por exemplo, chega o primeiro lote de operários classificados como “braçais”: quatro mil indianos que se dispõem a trabalhar em todo tipo de empreitada, em troca de uma pensão vitalícia às suas famílias terrestres. Ano após ano, os módulos de transporte aumentam em capacidade, levando grupos cada vez maiores de trabalhadores – quase sempre nascidos no continente africano ou nos confins da Ásia.
A jornada diária de trabalho foi fixada em 10 horas e a semanal em 55. O comitê corporativo responsável pelo planejamento e gestão do empreendimento colonial justificava os excessos de carga de trabalho, mortes e insegurança laboral pelo ineditismo da façanha de se reconstruir a Terra em outro planeta. Após questionamentos da opinião pública terrena, a ONU esclareceu que a fiscalização dessas “relações trabalhistas extraterrestres” era de competência exclusiva da financiadora daquela grande aventura, a iniciativa privada. E tudo era tão novo e maravilhoso que, francamente, ninguém se importava muito. Estávamos em Marte! Como bem disse o âncora da Fox-CNN: “a morte de alguns humanos oriundos daquilo que já se chamou Bangladesh é um preço muito baixo a se pagar pelo progresso. O que são cinquenta trabalhadores braçais na conta da conquista do cosmo?” Obviamente, eram muitos mais: centenas de cadáveres perfeitamente evitáveis. Mas as pessoas não estavam muito preocupadas. Nem com trabalhadores mortos; nem com a difusão da inteligência artificial; com o primeiro homicídio cometido por um robô; ou o estabelecimento do padrão mundial de registro e identificação a partir de um nanochip enxertado no cérebro de cada indivíduo.
Meus caros leitores, hoje, 7 de março de 2199, encerro meu relato. Marte já possui cinco milhões de habitantes e tem uma eficiência administrativa que faria corar um genocida. E este é mais um dia grandioso para toda a humanidade. Em uma de suas poucas atribuições remanescentes, a ONU irá realizar um pronunciamento solene sobre nosso primeiro contato oficial com uma forma de vida alienígena. A Fox-CNN tem antecipado esse evento há dias e a audiência deve ser comparável à de nossa chegada a esta desolação avermelhada. Reflito sobre esse evento enquanto observo meu computador sobre a mesa deste “Café” marciano. Acho impressionante nossa necessidade de copiar lugares, estilos e decorações da Terra. Parece que somos incapazes de algo realmente novo… De forma prosaica, espero minha taça de sorvete de morango e olho pela janela a paisagem monótona de poeira, que vai até onde a vista alcança. Aqui e ali, nos inúmeros módulos da colônia, há pequenos bares, restaurantes, mercadinhos e um esforço grande para fingir a normalidade de um bairro qualquer de Nova York, Paris ou São Paulo. O fumo é tolerado, o álcool ainda não (embora exista contrabando). Ah, o sorvete de morango! Parece remédio, de tão artificial. Mas ao menos é doce e gelado. Em um esforço comovente de decoração, vários pôsteres preenchem as paredes do “Café”. Todos remetem a algum evento histórico ou grande acontecimento cultural. Alguns são muito coloridos, como o da banda Queens of the Rainbow (sucesso na década de 2090) ou o da Série Mundial ganha pelo Chicago Cubs em 2035. Outros soturnos, como um chamado de alistamento dos Aliados, na famosa “Segunda Guerra Mundial”, ou o aviso da campanha mundial de vacinação contra a gripe do gafanhoto, em 2046. De todos eles, o meu preferido é um que fica escondido no canto esquerdo do pequeno salão. Ele tem dois jogadores de uma versão bem antiga de “futebol”. Na imagem, um homem rosado veste vermelho e preto e chuta uma bola, enquanto é observado por outro, com pele mais escura, a vestir verde e amarelo. A cena, que pode parecer confusa aos olhos de 2199, torna-se bem clara após a leitura da legenda: “Alemanha 7 x Brasil 1, 2014, Belo Horizonte, Brasil”.
Ora, quem se esqueceria disso?
Imagem: concepção artística de uma base humana em Marte. No corte, é mostrada uma área de horticultura subterrânea. Foto: NASA Ames Research Center/domínio público.